XXVI Domingo do Tempo Comum: Lc 16,19-31 - Lázaro, o irmão que não pode faltar!

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Jesus ao contar a parábola, que a Liturgia deste XXVI Domingo do Tempo Comum nos apresenta, não pretende fazer uma explanação da geografia do além, nem muito menos fornecer elementos teóricos para uma teologia (escatologia) sobre os novíssimos (céu, inferno, purgatório). Mas é, antes de tudo, uma provocação muito concreta, inserida no plano histórico, pois é nele que se decide e se constrói a eternidade de plenitude ou de frustração. As pontes que nos ligam com a eternidade repousam suas cabeceiras também do lado de cá. Porém, se do lado de cá construirmos abismos ou muralhas, a nossa eternidade será uma eterna angústia de não poder ultrapassar para o lado da plenitude da vida; veremos a água, mas não poderemos matar a sede.
A parábola não nos faz imaginar como será a felicidade e a desventura eternas, mas nos ajuda a crer que elas existem como consequência de nossa vida aqui e agora. Contudo, enquanto peregrinamos na terra é hora de fazermos escolhas acertadas. Escolhas não tão simples nem fáceis de fazer quando estamos apoiados apenas nos nossos próprios critérios, por isso Deus nos ajuda, envia-nos constantemente “Lázaros” até a nossa porta, porém trazê-los para dentro de nossa casa e fazê-los sentar-se à nossa mesa será uma decisão de cada um de nós. 
O paralelo que Lucas estabelece entre o homem rico e o pobre Lázaro é evidente e muito didático, e sua finalidade é apelo de conversão enquanto é tempo. É o grande desafio de reconhecer que a dignidade do ser humano não está naquilo que ele possui, mas naquilo que ele é: filho de Deus. Na Bíblia, o nome de uma pessoa muitas vezes indica a sua dignidade, relaciona-a com a sua missão ou mesmo manifesta uma ação de Deus na sua vida. Na parábola, o homem que tinha apenas riqueza material perdeu a sua identidade, por isso não tem nome, é apenas rico e epulão. Por outro lado, o pobre, apesar de sua condição de faminto, doente e marginalizado, é identificado pelo seu nome: Lázaro (em hebraico El azar: Deus ajuda). Esta é a mais alta dignidade de um ser humano, ser uma ajuda de Deus na vida do seu semelhante, é a missão mais nobre de uma pessoa que favorece relações de fraternidade. A sua indigência era apelo à sensibilidade do rico, pois se este fosse capaz de vê-lo como um irmão, tê-lo-ia recebido em casa e matado a sua fome. Na tradição bíblica, indica-se também a dignidade através do simbolismo das vestes. Do ponto de vista material, o rico vestido de púrpura e linho fino parece muito digno, mas porque é insensível diante da nudez do semelhante, suas ricas vestimentas deixam de indicar dignidade, e tornam-se apenas manifestação de opulência que humilha o pobre e insulta os céus. A púrpura (vermelha) da sua roupa contrasta com a pele nua do seu próximo, a qual pode também ser vista avermelhada por causa das úlceras que a cobriam.
Fisicamente tão próximos, mas separados por um abismo da insensibilidade humana, pois enquanto um se banqueteava com requinte todos os dias, o outro jazia à porta desejando ardentemente comer o que o rico, da sua mesa farta, jogava fora (era costume oriental, durante as refeições, limpar pratos e copos com pedaços de pão e jogá-los debaixo da mesa). Não se alimenta apenas com as migalhas que sobram e caem, mas deseja comer pelo menos o lixo jogado fora. O próprio Lázaro é descrito como alguém jogado no chão (grego eblébleto tros ton pylona: estava jogado junto ao portão). Os cachorros, certamente selvagens, disputavam com o pobre o mesmo lixo, e ao lamber as úlceras, equiparavam-no como algo a ser consumido. 
Porém, a morte revelou a condição comum ao pobre Lázaro e ao rico sem nome, ambos morreram. Entretanto, o destino de cada um: “O pobre foi levado pelos anjos ao seio de Abraão”, “O rico foi sepultado”, manifestou que na vida o rico não reconheceu que era semelhante ao pobre, e que o abismo que cavara entre a sua mesa e o batente da sua casa, agora na eternidade, se perpetuava; por incrível que pareça a ironia, a sua escolha foi respeitada.
Mentalidade e atitudes da vida terrena do rico se evidenciam no diálogo com o Pai Abraão. Se por um lado, reconhece-se filho de Abraão, e mesmo nos tormentos eternos não deixa de sê-lo, por outro lado, continua a não reconhecer-se irmão de Lázaro, pois não suplica que Abraão, o Pai de uma multidão, mande-lhe um dos seus outros filhos, naturalmente um irmão seu, mas pede que mande Lázaro como um servo para prestar-lhe um serviço. Esta sua atitude comprova que viveu na terra fazendo dos outros seus servidores e, por isso, na eternidade ainda exige ser servido. 
Diante da impossibilidade de transpor o abismo terreno agora eternizado, apela para que o Pai Abraão mande Lázaro à sua casa para advertir os seus irmãos. Mais uma vez, o seu pedido revela a sua mentalidade egoísta; se na terra pensava apenas no que era seu, na eternidade ainda perpetua sua preocupação apenas com os seus quando afirma: “Manda Lázaro até a casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; que ele os advirta...Que não venham também eles para esse lugar de tormento”. A ajuda que agora ele suplica para si e para os seus, na verdade, ele a recusou durante toda a sua vida terrena, pois foi incapaz de matar a fome de Lázaro. Se na terra não foi capaz de matar a fome do irmão, na eternidade não encontrará irmão que mate a sua sede. 
No simbolismo da Bíblia, o número sete representa o completo, a totalidade. Na família do rico composta por seis irmãos (ele + cinco), faltava aquele que a tornaria completa. Lázaro (Deus ajuda) é esta ajuda necessária para completar o imperfeito. Lázaro dava-lhe a possibilidade da prática efetiva da caridade. Lázaro era a grande ajuda para ensinar-lhe a partilha e a solidariedade. Nos Lázaros jogados à nossa porta, Deus se revela faminto, sedento, sem roupa, encarcerado, doente. Acolhendo-os, o abismo intransponível se desfaz, e pode-se passar para a feliz eternidade, pois nada nos impede. A ajuda de Deus é-nos oferecida sempre, portanto, Lázaro é sétimo irmão que não pode faltar.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana