XX Domingo do Tempo Comum: Lc 12,49-53 - A paz que queima e divide

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Quem, num primeiro momento, não fica perplexo ao ouvir este pequeno trecho do evangelho deste XX Domingo do Tempo Comum quando Jesus afirma: “Eu vim trazer fogo à terra”, e algo mais escandaloso ainda: “Pensais que vim para estabelecer a paz sobre a terra? Não, eu vos digo, mas a divisão”. São palavras duras que parecem contradizer aquele anúncio dos anjos na gruta de Belém, por ocasião do nascimento do Príncipe da paz: “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama” (Lc 2,14), ou mesmo aquilo que o próprio Senhor ordena aos seus discípulos enviados em missão: “Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro ‘Paz a esta casa!’” (Lc 10,5), sem contar que, ressuscitado, ao aparecer aos seus discípulos, disse-lhes: “A paz esteja convosco!” (Lc 24,36). Porém, essas severas afirmações do evangelho de hoje estão em profunda coerência com a profecia do velho Simeão: “Eis que este menino foi colocado para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição” (Lc 2,34). 
Para entender melhor essas afirmações de Jesus, é preciso relembrar uma famosa expressão já utilizada no seu tempo: “Pax Romana”, uma expressão latina que significa "A Paz Romana", para indicar o longo período de relativa “paz”, imposta pelas armas e pela cruel dominação do Império Romano (Do imperador Augusto em 27 a.C. que declarou o fim das guerras civis, e que perdurou até o ano da morte do imperador Marco Aurélio, no ano 180 d.C.). Portanto, a “paz” era sinônimo de segurança artificial, onde os povos subjugados (entre eles Israel) tinham perdido a sua autonomia governativa, e qualquer expressão de insatisfação ou rebelião era reprimida. Por isso, dizia-se que a terra vivia em paz. E esta paz, segundo a concepção religiosa romana, era uma dádiva dos deuses. 
É nesse contexto que precisamos entender que a paz anunciada pelos anjos na gruta de Belém e alcançada pelo Senhor ressuscitado não tem nada a ver com a paz do Império, mas, pelo contrário, está em perfeita sintonia com aquilo que o Senhor diz no evangelho de hoje: fogo, batismo, divisão.  
Se a paz romana era fruto de uma estratégia de dominação onde se bania qualquer tipo de conflito, sobretudo político, a paz que Jesus traz é fogo, isto é, provocação para discernimento, purificação, exige mudança. O próprio João Batista anuncia que o Messias “batizará com o Espírito Santo e com o fogo... E queimará a palha num fogo inextinguível” (Lc 3,16.17). Tal batismo não é apenas um entrar nas águas, mas um mergulho na morte como consequência e prova definitiva de uma vida entregue por causa do Reino (cf. Lc 9,23-25), a fim de alcançar a verdadeira paz. Não é dádiva dos deuses, mas fruto de um combate contra o mal que alcançará seu ponto culminante na cruz. A paz não cai das moradas dos deuses, mas é construída à medida que se assume colaborar com a implantação do Reino. 
Por isso, para se alcançar a verdadeira paz é preciso tomar decisões firmes, colocando o Reino acima de tudo, até mesmo daquilo que é considerado sumamente importante: “Deixa primeiro enterrar meu pai”, “Permite-me primeiro me despedir dos meus”, pois “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não é apto para o Reino de Deus” (Lc 9,59.61.62).  
Mais do que objetivo ou finalidade do seguimento de Cristo, a divisão entre as pessoas é uma consequência das decisões tomadas. Jesus afirma: “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26). Na linguagem enfática da Bíblia “odiar” significa o absoluto desapego, não tem conotação moral de desprezo ou rejeição. A própria experiência nossa ou de outrem testemunha tantos conflitos enfrentados por causa de nossa opção de fé. Não é raro ouvir relatos de pessoas que são rejeitadas, insultadas e até mesmo perseguidas no seio de sua própria família por ter aderido à fé cristã. Em muitos casos, o conflito não se dá porque o cristão está querendo impor a sua fé aos outros, mas pelo simples fato de o cristão querer viver a sua fé. A presença de cristãos no mundo, principalmente em algumas zonas declaradamente hostis à sua fé, tem se tornado cada vez mais sinal de contradição, com todas as suas consequências, porém há um fogo, o Espírito Santo, que os sustenta e os encoraja até o batismo na morte, pois eles têm a certeza da vida que não morre, o que já lhes garante a verdadeira paz.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana