Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
O evangelho de hoje reúne alguns ditos sapienciais de Jesus que ilustram muito bem os seus ensinamentos anteriores (julgamento, misericórdia, perdão, generosidade etc.). Ainda que seja possível considerar cada um desses ditos separadamente, podemos perceber uma ligação muito estreita entre eles (cego, mestre-discípulo, cisco-trave, árvore-boa-má, tesouro-boca-coração). “Pode um cego guiar (grego: hodeguein, conduzir pelo caminho) outro cego?” No contexto bíblico muitas vezes encontramos a cegueira não apenas como impossibilidade de ver fisicamente, mas também como atitude moral, pecado, preferir as trevas à luz (cf. Jo 9,1.41). Uma das principais dificuldade de quem é cego diz respeito às suas limitações de locomoção. Por conseguinte, é comum relacionar a cegueira com a paralisia ou ao menos a dificuldade de caminhar. O caminho/caminhar na experiência do povo da Bíblia foi sempre entendido como dinâmica de vida, por isso a Palavra de Deus se faz necessária como luz que ilumina esse caminho (cf. Sl 118,105). Não basta apenas enxergar o caminho, mas conta também a direção que está se tomando, pois o caminho seguro e o destino desejado são inseparáveis, como de uma árvore se espera que dê bons frutos. Se o caminho for correto, o destino será plenamente satisfatório, assim como se a árvore for boa, produzirá bons frutos.Contudo, apesar de ser cego, alguém pode caminhar mesmo com grandes dificuldades e muitos riscos, mas para isso é preciso que seja ajudado por um outro que enxergue e queira guiá-lo. Daí a necessidade de enxergar bem: “Tira primeiro a trave do teu próprio olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão”. A experiência de ajudar um cego caminhar nem sempre pode ser vista como altruísmo, generosidade, serviço. Infelizmente, essa aparente ajuda pode se tornar meio de dominar a pessoa limitada pela sua capacidade visual, sobretudo porque o cego se coloca totalmente nas mãos de quem o guia que, por sua vez, dependendo da sua maneira de agir, pode se tornar um dono do destino e da pessoa do necessitado. Por isso, a ajuda que se torna dominação revela uma cegueira pior ainda, redundando numa tragédia: “não cairão os dois num buraco?”. Buraco, fossa, cova, palavras que indicam uma interrupção passageira ou permanente na dinâmica do caminho. Portanto, cair no buraco é o ponto mais alto da dificuldade de caminhar, pois uma vez dentro do buraco, acrescenta-se à dificuldade de caminhar a impossibilidade de sair de lá sozinho.Como se pode resolver a cegueira do guia e do guiado? Reconhecendo-se a necessidade de um mestre que ensina aos seus discípulos que, por sua vez, não poderão estar acima dele, caso contrário, continuarão cegos. Evidente é a relação entre os provérbios do cego e do cisco-trave no olho. A cegueira fundamental consiste em não reconhecer o seu próprio pecado (cegueira) e pensar que é capaz de corrigir o pecado do outro: “Deixa-me tirar o cisco do teu olho”. A expressão utilizada no grego (aphes ekbalo, permite-me expulsar-puxar para fora) também pode ser traduzida conservando a sua ênfase: “fica aí parado, deixa-me tirar”. Ficar parado está em oposição a caminhar (guiar, conduzir). Portanto, o cego que quer guiar um outro, na verdade, impede-o de caminhar, uma vez que ambos não podem ver a estrada. Jesus é o verdadeiro mestre, pois é, ao mesmo tempo, luz e caminho, verdade e vida, guia e pastor. Seguir Jesus é vencer a cegueira de não querer deixar-se iluminar; só o discípulo que se deixa formar bem pelo mestre pode também ensinar: “Então poderás ver bem...”. Contudo, jamais ensinará se não tiver apreendido na prática: “Tira primeiro a trave do teu próprio olho”. E isto só será possível se for capaz e humilde e se deixar ajudar, pois ninguém consegue eficazmente corrigir uma outra pessoa, sem corrigir-se a si mesmo. Jesus na sua última comparação (árvore) coroa os seus ditos anteriores dando critérios concretos para verificar se vale a pena ou não ser seu discípulo: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins...”. O discipulado cristão foi sempre entendido como comunhão com Jesus. Ser discípulo do Mestre Jesus não é ser um simples simpatizante ou cliente, um admirador ou propagador de alguma de suas ideias, mas é alguém que toma a decisão de seguir seus passos, fazer seu caminho, abraçar o seu destino; portanto, sabe que noutra estrada lhe faltará a luz necessária para pisar com firmeza no chão; noutras sendas encontrará só buracos. A metáfora da árvore está presente ao longo da Sagrada Escritura (cf Sl 1), porém alcança a sua aplicação mais plena em Jesus quando afirma: “Eu sou a videira verdadeira” (Jo 15,1): “Não se colhem uvas de plantas espinhosas”. Destarte, como discípulos do Mestre somos enxertados nessa excelente árvore para ser galhos que produzem bons frutos. Por fim, o último dito: “A boca fala do que o coração está cheio”, aponta para o caminho que deve seguir o discípulo: encher o coração das boas palavras do Mestre a fim de que elas transbordem pela sua boca. O anúncio do evangelho pode vencer a nossa cegueira se for acolhido como proposta de discipulado; a luz do evangelho pode nos fazer recuperar a vista se estivermos dispostos a reconhecer que só o Mestre é o caminho que conduz à vida. Só enxertados nessa árvore da vida, o Mestre Jesus, poderemos ser e, ao mesmo tempo, produzir bons frutos na sociedade muitas vezes estéril e envolta em trevas por causa da profundidade do buraco onde caiu.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana