VIII Domingo do Tempo Comum: Lc 6,39-45 - Corrige-se alguém, corrigindo-se!

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O evangelho de hoje reúne alguns ditos sapienciais de Jesus que ilustram muito bem os seus ensinamentos anteriores (julgamento, misericórdia, perdão, generosidade etc.). Ainda que seja possível considerar cada um desses ditos separadamente, podemos perceber uma ligação muito estreita entre eles (cego, mestre-discípulo, cisco-trave, árvore-boa-má, tesouro-boca-coração). 
Não pode um cego guiar (grego: hodeguein, conduzir pelo caminho) outro cego?” No contexto bíblico muitas vezes encontramos a cegueira não apenas como impossibilidade de ver materialmente, mas também como atitude moral, pecado (cf. Jo 9,1.41); preferir as trevas à luz. Uma das principais dificuldade de quem é cego diz respeito às suas limitações de locomoção. Por conseguinte, une-se à cegueira a paralisia ou ao menos a dificuldade de caminhar. O caminho/caminhar na experiência do povo da Bíblia foi sempre entendido como dinâmica de vida. E a Palavra de Deus se faz necessária como luz que ilumina esse caminho (cf. Sl 118,105). Não é apenas uma questão de fazer ver a estrada, mas de indicar a direção que se deve tomar: caminho seguro e destino desejado são inseparáveis, como a árvore e seus frutos. Se o caminho é correto, o destino é plenamente satisfatório, assim como a árvore boa que produz bons frutos.
Contudo, apesar de ser cego, alguém pode caminhar mesmo com grandes dificuldades e muitos riscos, mas para isso é preciso que seja ajudado por um outro que enxergue e queira guiá-lo. Daí a necessidade de enxergar bem: “Tira primeiro a trave do teu próprio olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão”. 
Por outro lado, a experiência de ajudar um cego caminhar nem sempre pode ser vista como altruísmo, generosidade, serviço. Infelizmente, há também a possibilidade de favorecer um domínio negativo sobre a outra pessoa, visto que o cego se coloca totalmente nas mãos de quem o guia que, dependendo da sua maneira de ver, pode se tornar um dono do destino e da pessoa do necessitado. Por isso, a ajuda que se torna dominação revela uma cegueira pior ainda, redundando numa tragedia: “não cairão os dois num buraco?”. Buraco, fossa, cova, palavras que indicam uma interrupção passageira ou permanente na dinâmica do caminho. Portanto, cair no buraco é o ponto mais alto da dificuldade de caminhar, pois uma vez dentro do buraco, acrescenta-se à dificuldade de caminhar a impossibilidade de sair de lá sozinho.
Como resolve-se a cegueira do guia e do guiado? Reconhecendo-se a necessidade de um mestre que ensina aos seus discípulos e, que por sua vez, não poderão estar acima dele, caso contrário, voltarão a ser cegos. 
Evidente é a relação do dito do cego com o seguinte do cisco-trave no olho, em que consiste a cegueira fundamental: não enxergar o seu próprio pecado (cegueira) e pensar que é capaz de corrigir o pecado do outro: “Deixa-me tirar o cisco do teu olho”. A expressão utilizada no grego (aphes ekbalo: permite-me expulsar-puxar para fora) também pode ser traduzida tentando conservar a sua ênfase por: “fica aí parado, deixa-me tirar”. Ficar parado está em oposição a caminhar (guiar, conduzir). Portanto, o cego que quer guiar um outro, na verdade, impede-o de caminhar, uma vez que ambos não podem ver a estrada. Jesus é o verdadeiro mestre, pois é, ao mesmo tempo, luz e caminho, verdade e vida, guia e pastor. Seguir Jesus é vencer a cegueira de não deixar-se iluminar; só o discípulo que se deixa formar bem pelo mestre pode também ensinar: “Então poderás ver bem...” Contudo, jamais ensinará se não tiver apreendido na prática: “Tira primeiro a trave do teu próprio olho”. E isto só será possível se for capaz e humilde e se deixar ajudar. 
Jesus na sua última comparação (árvore) coroa os seus ditos anteriores dando critérios concretos para verificar se vale a pena ou não ser seu discípulo: “Não existe árvore boa que dê frutos ruins...” O discipulado cristão foi sempre entendido como comunhão com Jesus. Ser discípulo do Mestre Jesus não é ser um simples simpatizante ou cliente, um admirador ou propagador de suas ideias, mas alguém que toma a decisão de seguir seus passos, fazer seu caminho, abraçar o seu destino. Sabe que noutra estrada lhe faltará a luz necessária para pisar com firmeza no chão; noutras sendas encontrará só buracos. A metáfora da árvore está presente ao longo da Sagrada Escritura (cf Sl 1), porém alcança a sua aplicação mais plena em Jesus quando afirma: “Eu sou a videira verdadeira” (Jo 15,1): “Não se colhem uvas de plantas espinhosas”. Destarte, como discípulos do Mestre, somos enxertados nessa excelente árvore para ser galhos que produzem bons frutos. Por fim, o último dito: “A boca fala do que o coração está cheio”, aponta para o caminho que deve seguir o discípulo: encher o coração das boas palavras do Mestre a fim de que elas transbordem pela sua boca. O anúncio do evangelho pode vencer a nossa cegueira se for acolhido como proposta de discipulado; a luz do evangelho pode nos fazer recuperar a vista, se estivermos dispostos a reconhecer que só o Mestre é o caminho que conduz à vida. Só enxertados nessa árvore da vida, o Mestre Jesus, poderemos ser bons frutos na sociedade muitas vezes estéril e envolta em trevas.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana