VI Domingo Tempo Comum: Mt 5,17-37 - Justiça do Reino: mais do que uma letra

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Para Mateus, Jesus é o verdadeiro Mestre da justiça. Apesar de ser muitas vezes acusado de transgressor dos mandamentos, Ele mesmo declara: “Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento”. Nesta afirmação de Jesus, não encontramos apenas uma defesa de si mesmo e de seus ensinamentos, mas a denúncia de algo mais grave: a tentativa de alguns mestres da Lei e fariseus de destruir o próprio fundamento dos mandamentos, grande ameaça à vida. Pois, fazendo muitas manobras interpretativas, abandonavam o núcleo fundamental da Lei para aplicá-la (fazer justiça) de acordo com seus interesses, favorecendo suas posturas de dominação ideológica, religiosidade hipócrita e atitudes demagógicas, como denunciará mais adiante o próprio Jesus: “Amarram pesados fardos e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los” (Mt 23,4). Diante dessa tentativa de destruição da Palavra de Deus por parte dos mestres da lei e dos fariseus, Jesus lança aos seus discípulos o grande desafio: “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da lei e dos fariseus, vós não entrareis no reino dos céus”. 
Encontramos no evangelho de hoje, de forma muito didática, como Jesus faz essa denúncia. Primeiramente, afirma que a Lei de Deus não é um conjunto de mandamentos isolados, aplicados casuisticamente, manipulados de forma arbitrária a ponto de serem moldados segundo algumas situações particulares, justificando uma aplicação distorcida da Lei. Mas a Lei de Deus tem um fundamento único, que dá coerência a todos os mandamentos e, portanto, nem um iota pode ser mudado. Não se trata de fundamentalismo, mas de reconhecer o fundamento da Lei, como expressão da vontade de Deus, que deve ser conhecida e praticada, a fim de que a vida seja respeitada e preservada como valor absoluto.
Quando Jesus afirma que nada pode ser mudado da Lei, nem um iota nem mesmo um tracinho, está afirmando que esfacelar a Lei é o primeiro passo para desintegrá-la, enfraquecê-la e, por conseguinte, destruí-la. O Mestre não fez referência à letra iud (grego iota) simplesmente por ser a menor letra do alfabeto hebraico, mas por seu profundo significado. Ela é a décima letra do alfabeto hebraico, isto significa uma referência à totalidade dos dez mandamentos (É uma pena que, na maioria das vezes, se traduza genericamente por “uma só letra ou vírgula”). Portanto, tirar um só mandamento é ferir a unidade indissolúvel da Lei, que se resume no amor a Deus e ao próximo com expressões bem concretas. Para provar que não veio destruir a lei, mas levá-la a pleno cumprimento, Jesus recupera o seu verdadeiro significado fazendo a releitura de alguns dos mandamentos. Começando pelo 5º mandamento (Não matarás), que está no centro do decálogo, Jesus dá a chave de leitura para todos os outros: a vida que deve ser respeitada como principal dom de Deus. Matar, cuja punição é a morte eterna, não significa apenas acabar com a vida física de alguém, mas implica todo o processo de destruição da pessoa nas suas várias dimensões (física, moral, espiritual, social), não excluindo até a morte do assassino, que tomado de cólera, já começa por destruir-se a si mesmo. Matar também significa tratar o irmão como patife (aramaico: raqa, cabeça oca) ou tolo (grego: morós, idiota).
Uma das responsabilidades dos mestres da Lei era justamente instruir o povo com os Mandamentos, a fim de que se tornasse um povo sábio e inteligente que sabe fazer escolhas acertadas, que não se deixa confundir e enganar, que orientando-se pela Palavra de Deus, opta por escolher a vida e não a morte (cf. Dt 30,15s). Os mestres conheciam este seu dever: “Observareis os mandamentos de Javé vosso Deus tais como vo-los prescrevo... Portanto, cuidai de pô-los em prática pois isto vos tornará sábios e inteligentes aos olhos dos povos” (Dt 4,2.6). Deixar o povo na ignorância, sem o verdadeiro conhecimento dos mandamentos, era aprisioná-lo, levando-o à morte. Portanto, Jesus denuncia este pecado dos fariseus e mestres da Lei relacionando-o com o mandamento de “Não matarás”. Tratar as pessoas como imbecis ou tolas é negar-lhes o direito de conhecer a verdade, enganando-as com práticas pseudo-religiosas infantilizadoras; anestesiadas por um sentimentalismo sem um mínimo de racionalidade, são impedidas de amadurecer na fé e tornar-se menos dependentes de guias-cegos.  O individualismo da prática religiosa é também uma forma de matar o irmão. Jesus dá um exemplo concreto de como se faz isso: agindo de forma hipócrita, isto é, apresentar-se diante de Deus buscando a comunhão com Ele, sem estar em comunhão com o irmão.
Intimamente relacionado ao “Não matarás” está o “Não cometerás adultério”. Um mandamento que não diz respeito apenas à fidelidade conjugal, mas à própria aliança com Javé. Aliança que está fundamentada numa atitude de doação, que exige integridade, fidelidade e amor incondicional. O adultério destrói todas essas condições para se viver o amor de forma autêntica, na liberdade e na corresponsabilidade. Contudo, a infidelidade é consequência de um processo de destruição da Lei de Deus, por isso, mais uma vez Jesus vai apresentar a raiz do pecado, que não está no ato em si, mas já nas atitudes que são cultivadas no coração, centro das decisões, e que, consequentemente, levam à prática do adultério. Olho e mão (direitos) simbolizam todo o ser humano na sua capacidade de conhecer (olho) e agir (mão). O povo que conhece a Lei de Deus sabe como deve se comportar. Mas se o olhar estiver desviado para outro lugar, as consequências desastrosas serão inevitáveis. A infidelidade do povo era esquecer o que os seus olhos tinham visto e, por isso, buscava outros deuses (idolatria: adultério). O Deuteronômio já advertia: “Apenas fica atento a ti mesmo! Presta muita atenção em tua vida, para não esqueceres das coisas que os teus olhos viram, e para que elas nunca se apartem do teu coração... Ensina-as aos teus filhos” (Dt 4,9). A infidelidade do povo muitas vezes era consequência da infidelidade dos mestres em relação à sua missão de fazê-lo conhecer os mandamentos de Deus. Por fim, Jesus retoma um dos mandamentos relacionados ao amor a Deus (“Não tomar seu nome em vão”): “Não jurarás falso, mas cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor”. O juramento era uma atitude de arrogância do homem que tomava Deus como testemunha dos seus atos, quando na verdade, é o homem que deve ser testemunha das ações de Deus. Portanto, a fidelidade à aliança (6º mandamento), o compromisso com a vida (5º mandamento) serão o modo de o homem testemunhar o seu sim ou seu não diante de Deus. Todas as vezes que o homem fizer tentativas de distorcer a Palavra de Deus, cujo intérprete é o seu Filho, está colaborando com o Maligno, cujo projeto é destruir a vida, começando com a desintegração da Palavra de Deus, confundido as mentes com ideologias de morte e esvaziando a cabeça das pessoas, para fazê-las imbecis (raqa), presas de fácil dominação.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana