Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, cujo culto litúrgico remonta a São João Eudes (1601-1680), tem suas origens mais profundas no acontecimento relatado no evangelho de hoje: “Um soldado abriu abriu-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. Aquele que viu, dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro” (Jo 19,35). A autêntica devoção ao Sagrado Coração de Jesus nos leva ao calvário para fixarmos o nosso olhar nessa torrente de graças que emana de um coração ferido pela lança, mas antes de tudo de um coração traspassado de amor. O discípulo amado não vê apenas a maldade de um golpe de lança rasgando o coração de um homem pregado na cruz para confirmar a sua morte, mas o seu olhar penetra a dimensão mais profunda daquele coração que, antes mesmo de ser ferido pela lança, já estava aberto e que se torna fonte de vida perene. Um coração que se não estivesse já aberto não poderia ter comunicado bondade, perdão, misericórdia, curado enfermidades do corpo e da alma; se o coração de Jesus não fosse um coração aberto não teria revelado a vontade do Pai que o enviou por amor para salvar a todos que nele crerem (Jo 3,16). Nos relatos do batismo de Jesus, os evangelistas falam que o céu se rompe e se viu o Espírito descer sobre ele. Na Eucaristia, Jesus também rompe (parte) o pão para indicar a sua morte na cruz. Portanto, toda a vida e missão de Jesus estão marcadas por uma atitude de abrir-se com todas as consequências desse gesto (doação, revelação, entrega etc.)Os Padres da Igreja, sobretudo Santo Agostinho, vislumbraram no Cristo adormecido na cruz, que tem o seu coração traspassado, o novo Adão. Assim como na primeira criação Deus fez Adão adormecer para do seu lado formar a sua companheira (Gn 1,21-22), agora na cruz o novo Adão adormece, para do seu lado nascer a sua esposa, a Igreja; a coerência bíblico-teológica confirma essa intuição patrística, pois para São João a morte de Cristo, a sua hora, é o momento da manifestação da sua glória, realização da sua missão, quando entrega o Espírito (antecipação de Pentecostes) fazendo assim nascer a comunidade daqueles que iriam continuar a sua missão. A Igreja não é simplesmente um grupo de pessoas que se organizam para realizar algumas atividades, mas a Igreja nasce do Coração do seu Senhor, banhada na água do batismo e revigorada pelo sangue da Eucaristia. Portanto, no alto da cruz, no nascedouro da Igreja, do Coração de Jesus, os dois sacramentos fundamentais da Igreja se evidenciam como manifestação desse Coração aberto por amor, e não apenas ferido pela lança. No batismo mergulhamos nesse coração aberto e somos adotados como filhos no Filho; a graça do batismo nos leva ao calvário para que, olhando para o coração traspassado, nos tornemos também discípulos contemplativos, para ver o que o discípulo amado viu e acreditou. Na Eucaristia, mais uma vez nos encontramos no altar do sacrifício para contemplar o coração aberto que se fez sacerdote e cordeiro para nos reconciliar com Deus e nos tornar participantes do banquete da plenitude da vida. A devoção ao Coração de Jesus não nos leva apenas à contemplação de um coração ferido e traspassado, para nos favorecer sentimentos de piedade, mas nos empenha num testemunho: “Aquele que viu, dá testemunho...”. Portanto, o testemunho é uma característica fundamental da devoção. O Coração de Jesus aberto para amar, perdoar, acolher, solidarizar-se com os sofredores e pobres, deve ser inspiração para que o nosso coração também seja semelhante ao Dele.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana