Solenidade de todos os Santos - Mt 5,1-12a: Santidade: opção ou condição?

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A Solenidade de todos os Santos e Santas de Deus é mais do que fazer justiça à “multidão incontável de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas” (1ª leitura), pessoas realmente santas, mas que não são veneradas na liturgia, ou porque não foram canonizadas ou mesmo porque não estão incluídas no calendário litúrgico universal. 
É, antes de tudo, uma ocasião propícia para renovarmos a nossa profissão de fé que proclama: “Creio na comunhão dos Santos”, uma das explicitações do que significa: “Creio na Igreja Católica”. Com isso não estamos apenas lembrando que a Igreja tem alguns santos e santas, sem dúvida, dignos de reconhecimento por causa do seu testemunho de fé, esperança e caridade. Mas nesta solenidade, reafirmamos mais uma vez a verdade fundamental da vocação do povo de Deus: a santidade.

O Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium), recordou-nos aquilo que cremos ser a Igreja-povo de Deus: “Indefectivelmente santa” (LG 39), reafirmando que a santidade da Igreja não provém dos “méritos dos seus membros, mas é a ação da graça de Deus que, pelo batismo, torna-os seus filhos e participantes da natureza divina, e por isso mesmo verdadeiramente santos” (LG 40). A Santidade não é um estado de perfeição, fruto do agir humano, mas “é o grande presente de amor que o Pai nos deu” (2ª leitura); portanto, ser santo é fundamentalmente ser de Deus. É uma condição que nos foi dada pelo próprio Deus, por pura e livre iniciativa sua. Não é uma opção presunçosa de nossa parte de busca de perfeição. Apesar de que, cabe aos seres humanos, à medida que despertam para essa consciência de terem sido criados à imagem e semelhança do Deus Santo, “com ajuda de Deus, conservar e aperfeiçoar na sua vida a santidade que receberam” (LG 40). Por outro lado, diante dessa condição, a única opção que o ser humano “pode” fazer é justamente renunciá-la, não ser santo, tornando-se posse de si mesmo, fechando-se absolutamente no seu narcisismo perfeccionista e, por conseguinte, destruindo-se no seu “ensimesmamento”. É uma separação que cria afastamento, diversamente da separação realizada por Deus que cria relação.

A obra da criação de Deus é essencialmente santificação, pois sendo Santo, não pode fazer outra coisa senão santificar. E Deus santifica quando cria, e cria separando (santificando) pois é o momento de dar identidade, condição fundamental para estabelecer relação. O próprio ser humano ganha identidade quando é separado (sexuado). Deus nos criou no momento em que nos separou para Ele, isto é, fez-nos santos. Porém, quando nos separamos Dele, perdemos essa condição primordial e, consequentemente, perdemos a nossa identidade. O pecado nos separa e nos afasta dessa condição original; é a perda da consciência de nossa identidade primordial, com suas consequências práticas. 
 “As Bem-aventuranças são o caminho indicado por Jesus para a santidade” (Papa Francisco, 01.11.2013). As Bem-aventuranças são, ao mesmo tempo, o perfil de quem é santo, pois revela quem é Jesus, e a proposta de vida para quem está disposto a segui-lo, isto é, a não renunciar a sua condição original. 
As 7 primeiras Bem-aventuranças apresentam aquilo que é a realidade primordial de todo ser humano, a sua condição de criatura e filho de Deus. Pobres: “Jesus se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). Não é a pobreza simplesmente humana que nos torna felizes, mas a pobreza assumida por Jesus (esvaziamento, desapego, independência diante dos bens materiais, confiança absoluta na Providência). Mansos: “Aprendei de mim que sou manso...” (Mt 11,29). Numa sociedade marcada pela violência de toda espécie, é preciso aprender a mansidão como estilo de vida, que rompe com a força de destruição da criação, do ser humano, da vida. 

Aflitos: Jesus faz a experiência da aflição: “A minha alma está triste até a alma...” (Mc 14,34). Tristeza que não significa desespero, mas uma linguagem que indica que algo está se perdendo. Reconhecer este apelo e lutar para que o essencial não se perca é a única maneira de ser consolados, mesmo quando angustiados. Famintos-sedentos de justiça: não representam apenas necessidades horizontais, mas na Tradição Bíblica, a justiça é a prática da vontade de Deus. Portanto, são as mais profundas necessidades do ser humano.    
Misericordiosos: Diz São Tomás de Aquino que a onipotência de Deus se manifesta de modo especial na sua misericórdia. Portanto, testemunharemos que somos de Deus se o seu poder manifestado em nós nos fizer verdadeiramente misericordiosos.
Puros de coração: condição para ver a Deus. Já a mais antiga Tradição Bíblica testemunha este desejo inexorável do coração humano. Jesus o sacia: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). A visão da fé purifica os nossos corações e mentalidade contaminados pelos preconceitos e inverdades, que impedem de ver o outro como semelhante àquilo que acreditamos ser: filhos de Deus.      
Construtores de paz: coroando as 7 atitudes garantidoras de felicidade, esta sétima nos remete à condição primordial da criação: o cosmos (harmonia, beleza, conciliação). É filho de Deus quem assume ser Dele, e com Ele, constrói o Shalom (a plenitude dos bens), seguindo a Cristo, que “é a nossa paz” (Ef 2,14). 
Por fim, as duas últimas bem-aventuranças dizem respeito às consequências que se devem enfrentar quando o ser humano nega a sua condição primordial e faz opção por não ser santo: perseguição, calúnia, mentira, todo mal contra quem reconheceu a sua condição fundamental e não abre mão dela, ainda que seja preciso pagar um alto preço, pois se deixa iluminar pelo Evangelho e conduzir pelo primeiro Bem-aventurado, Jesus, o Filho santo do Deus santo, que nos fez e nos quer seus santos. Eis a razão da nossa alegria!



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana