Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Podemos considerar os três dias que antecedem o Tríduo Pascal (segunda, terça, quarta feiras santas) como uma verdadeira preparação imediata para o momento mais alto de todo o ano litúrgico: O Tríduo Pascal. Estes três dias anteriores são como um tríduo para o Tríduo.
Segunda-feira Santa: A Unção de Betânia (Jo 12,1-11).Como fez no início do seu evangelho, introduzindo-o com uma Semana Inaugural (Jo 1,19-2,1), São João conclui o seu escrito com uma Semana Final por isso a perícope de hoje se abre com a expressão: “Seis dias antes da Páscoa”, daí segue-se uma regressão cronológico-simbólica até chegar no primeiro dia da Semana (sexto dia: 12,1; quinto dia: 12,12; quarto dia: 13,1; terceiro dia: 18,28; segundo dia: 19,31; primeiro dia: 20,1). Por ser o primeiro nesta ordem, nesse episódio temos já o anúncio do que vai acontecer no último dia (primeiro dia): relacionando o gesto da mulher com a sepultura de Jesus, ao ungi-lo com o perfume, o evangelista apontará para uma outra mulher junto à sepultura, que se dirige para lá a fim de concluir a unção, mas que vai se surpreender constatando que o sepulcro está vazio, o corpo não está lá, grande prova de que não fora ungido apenas com perfume, mas com o Espírito Santo, por isso não conheceu a corrupção, está vivo. O perfume que exala por toda a casa antecipa o anúncio da ressurreição que deve atingir toda a Terra; tudo o que acontece nesta cena aponta para algo maior que se realizará em breve.Em Betânia (Bet anawin = casa da pobreza/dos pobres) a generosidade da mulher que não mede esforço para manifestar o seu amor a Jesus (meio litro de perfume muito caro) contrasta com a escandalosa reação da mesquinhez de Judas, um dos discípulos, que considera o gesto um desperdício. Querendo se passar por benfeitor dos pobres, na verdade, quer se aproveitar da ocasião para substituir o generoso coração da mulher por sua bolsa de ladrão. Quando se justifica fazer o mínimo para expressar o amor a Deus, acaba-se faltando generosidade para amar o próximo, e a defesa dos necessitados torna-se discurso demagógico para favorecer estruturas corruptas que lhes roubam o necessário. No gesto da mulher encontra-se a expressão do coração de um verdadeiro discípulo que ama o seu mestre e a ele entrega o que tem de melhor. Judas não traiu apenas o seu mestre ambicionando o dinheiro, mas na raiz da sua traição está a falta de amor que o torna mesquinho e friamente calculista.A unção de Betânia está em paralelo com o primeiro episódio do Tríduo Pascal: O lava-pés (Jo 13,1-15). Assim como Maria ungiu os pés de Jesus e provocou o escândalo de Judas, Jesus lavando os pés dos discípulos também provocou o escândalo de Simão Pedro que resistiu em aceitar aquele “desperdício”, ou seja, o mestre se passando por servo. Em ambos os episódios vemos o anúncio do significado da morte de Jesus: gesto tão valioso e, ao mesmo tempo, incompreensível; dirá São Paulo: “Escândalo para os judeus, loucura para os pagãos” (1Cor 1,23). Terça-feira Santa: Anúncio da traição de Judas e da negação de Pedro (Jo 13,21-33.36-38).Se na unção de Betânia e no Lava-pés encontramos respectivamente dois dos discípulos escandalizados pelos gestos de generosidade e amor da mulher e de Jesus, nesta cena vemos o que verdadeiramente escandaliza: negar e trair o mestre. “Um de vós me entregará”: no contexto da última ceia (Jo 13-18), o evangelista João utiliza o mesmo verbo entregar (grego: paradidomi), cuja raiz é o verbo dar (grego: didomi), para indicar a contradição entre o agir de Jesus que dá a vida e o discípulo que traindo torna-se instrumento para que a vida de Jesus seja tirada. É o confronto entre o entregar para a vida e o trair para a morte. Estamos no contexto do lava-pés e, mais uma vez, um paralelo com a unção de Betânia, pois aparece o mesmo distintivo de Judas: “guardava a bolsa”. Nem mesmo diante dos gestos de amor do Mestre esse discípulo se convenceu de mudar de ideia, e ao receber o pão, símbolo marcadamente da entrega de Jesus, ele se retira para entregá-lo, foge da luz e se entrega às trevas: “Era noite”.“O galo não cantará antes que me tenhas negado três vezes”: Pedro acabara de dizer que daria a vida por Jesus. Contudo, não é possível dar a vida por Jesus se não for do mesmo modo que Ele deu a vida, isto é, morrendo por amor. No lava-pés Pedro demonstra não ter ainda entendido esse modo dar a vida expresso no serviço que leva à cruz; serviço por amor e não por funcionalidade; Jesus não queria tirar a sujeira dos pés dos discípulos, mas deixar gravado na mente e no coração deles o que significou toda a sua vida. A resistência de Simão Pedro demonstra que ainda precisava amadurecer para ser capaz de seguir a Jesus e morrer por ele. Contudo, antes que aconteça aquilo que no lava-pés é anunciado, isto é, a morte na cruz, Simão Pedro não consegue entender: “Agora, não entendes o que estou fazendo; mais tarde compreenderás”. Por isso, depois de ressuscitado, Jesus renova o convite a Simão Pedro: “Segue-me!” (21,19). O canto do galo, após as negações, para além de interpretações que tentam justificá-lo apelando para elementos históricos, na verdade, representa o momento do discernimento de Pedro, o reconhecimento do seu pecado de ter negado o Mestre, por isso ele chora amargamente, sinal de um profundo arrependimento, passo fundamental para ser acolhido por Jesus ressuscitado. Por outro lado, a decisão de Judas traidor, diferentemente de Simão Pedro, não demonstra arrependimento pelo que fez, apenas afoga-se no remorso; incapaz de chorar seu pecado, tira a própria vida para vingar-se do mal que cometeu. Quarta-feira Santa: A realização da traição de Judas (Mt 26,14-25)Este terceiro dia de preparação para o Tríduo Pascal não apenas apresenta o último episódio da sequência, mas retoma de forma drástica o que foi anunciado no primeiro dia durante a unção de Betânia, até porque na versão de Mateus a presente cena a sucede. O discípulo que se escandalizara diante da generosidade da mulher não conseguiu vender o perfume por 300 moedas a fim de garantir a sua “pilantropia”. Contudo, não desistiu do seu intento perverso e por isso parte para o plano B: consegue vender o seu Mestre por 30 moedas. Mais um paralelo intrigante: a mulher unge em vista da sepultura, o discípulo recebe o valor que era pago por um escravo morto (Ex 21,32: caso um escravo fosse atingido por um boi, o proprietário do boi deveria ressarcir ao dono do escravo morto 30 ciclos de prata). Não basta dizer que Jesus foi vendido pelo preço de um escravo, evidenciando que foi considerado de pouca valia, mas a soma equivalia a um escravo morto, isto é, Judas não vende Jesus como escravo, mas como escravo morto. Ainda que tenha decidido trair Jesus, Judas não foi traído por Jesus, pois “Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos”; logo, não foi excluído da mesa, lugar onde Jesus dirigiu as palavras-síntese de toda a sua vida: “Assim como o Pai me amou, e vos amei”. Nenhum dos apóstolos foi excluído do amor do Mestre, que os amou até o fim. O amor de Jesus jamais se afastou da verdade, por isso não engana: “O Filho do homem vai morrer, conforme diz a Escritura... Ai daquele que o trair...” Nestas palavras de Jesus vemos um último apelo de quem ama. Contudo, Judas não se deixa amar e insiste na sua decisão cuja pergunta irônica já traz em si a resposta: “Mestre, serei eu?” Jesus ratifica que a decisão de o trair não tira a responsabilidade e a liberdade do traidor: “Tu o dizes!”. Vivenciando esse tríduo para o Tríduo, a liturgia nos ajuda a fazer um exame de consciência diante do amor negado e, muitas vezes, traído. Só assim, poderemos acolher o convite de entrar no cenáculo, in Coena Domini, sentando-nos à mesa com o Mestre, e ouvirmos o “Eu te amo” mais sincero e verdadeiro que um coração humano necessita e pode ouvir. Porém, é preciso estarmos atentos para percebermos o Mestre levantar-se e nos chamar silenciosamente a segui-lo até a Cruz, pois é lá que Ele não apenas morre, mas nos dá a grande prova do “Eu te amo”. Mergulhados nas trevas da sua morte, mas perseverando na esperança, veremos irromper a luz fulgurante da sua vitória, luz que não apenas nos ilumina, mas nos faz enxergar o caminho a ser percorrido, pois com a força do seu Espírito nos faz suas testemunhas.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana