Quarta-feira de Cinzas: Mt 6,1-6.16-18 - Tempo de renovar a esperança de conversão

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O Papa Francisco na Bula de proclamação do Ano Santo, o Jubileu da Esperança, nos recorda: “Deste entrelaçamento de esperança e paciência, resulta claro que a vida cristã é um caminho, que precisa também de momentos fortes para nutrir e robustecer a esperança, insubstituível companheira que permite vislumbrar a meta: o encontro com o Senhor Jesus” (5). Sem dúvida, o tempo quaresmal que ora iniciamos constitui um momento favorável para, na esperança e paciência, progredirmos no caminho de conversão.  
No Antigo Testamento, sobretudo na tradição profética, a conversão era um caminho de volta para Deus (hebraico: shuv), como nos convida o profeta Joel (1ª leitura); sem uma atitude interior, isto é,  “rasgar o coração, e não as vestes”, a conversão pode resultar apenas num verniz superficial que mascara uma porta carcomida interiormente pelo cupim. Mais cedo ou mais tarde, o verniz desaparece e junto com ele desaba a porta. O profeta Joel convoca o povo, diante de um desastre ambiental e econômico ligado a uma invasão de gafanhotos, a uma conversão sincera e radical com atitudes concretas; não vê a catástrofe ambiental apenas algo natural, mas como um apelo do próprio Deus a fim de que o seu povo empreenda um caminho de conversão; portanto, o castigo não é punição mas pedagogia que favorece conscientização do pecado e decisão de mudança.
Mais uma vez a Igreja reza o salmo 50 (51), o Miserere; reconhecendo a nossa condição de pecadores, mas não desesperados, pois suplicamos ao Senhor: “Dai-me de novo a alegria de ser salvo”, expressão de que a confiança em Deus é o fundamento da esperança de uma autêntica mudança de vida.
São Paulo (2ª leitura) faz ressoar no seu ensinamento a verdade do amor de Deus que nos reconcilia com Ele, no seu Filho. Porém, não nos impõe a reconciliação, mas nos favorece um tempo de graça para nos demonstrar que nos quer salvar, pois nos socorre. 
Iniciando o tempo quaresmal, cuja característica fundamental é progredir no caminho de conversão, somos convidados a ouvir a palavra de Jesus que nos convida a acolher uma pedagogia eficaz a fim de darmos passos significativos nessa estrada, a prática da justiça do Reino de Deus para além de toda aparência piedosa ou postura moralizante.  
Retomando as três grandes práticas da religião de Israel: esmola, oração e jejum, Jesus corrige a sua deformação que as reduz a práticas teatrais e autorreferenciais. 
Antes de tudo, não podemos considerar a esmola, a oração e o jejum como atos de piedade isolados, na verdade um conduz ao outro que, por sua vez, se esvazia se não for expressão do outro. Em outras palavras, a caridade (do grego: eleemosyne, da mesma raiz de ser misericordoso) só será autêntica se for motivada por um verdadeiro e comprometedor sentimento de solidariedade para com o próximo, e só terá raízes se brotar do interior de quem está aberto ao Transcendente, uma vez que, sem o cultivo da vida interior (oração), a esmola não passará de assistencialismo escravizador ou mesmo ocasião de humilhação do semelhante necessitado. Por isso, uma “caridade” cuja motivação depende de aplausos é uma armadilha para nos colocarmos no centro, e banir Deus do horizonte da vida. A oração, por sua vez, é uma grande ajuda para equilibrar os nossos sentimentos e motivações na prática do bem e a corrigir a nossa presunção e autossuficiência, reconhecendo que a fonte da nossa bondade está em Deus, pois “só Ele é bom” (Mt 19,17).
Ademais, a oração nos favorece o reconhecimento de que há uma fome ainda maior do que aquela material. Na ordem pedagógica, o jejum pode ser uma valiosa experiência no nível concreto para percebermos que somos famintos de algo a mais do que o pão material, pois nos favorece o exercício da convicção de que se somos “capazes” de nos privar de algo bom e necessário para a vida (o alimento material), também seremos  capazes de uma privação mais importante para o nosso crescimento humano e espiritual, isto é, o humilde esforço de nos privarmos de pensamentos, palavras e gestos que reforçam o nosso egoísmo, ambição, maledicência. 
Engana-se quem pensa que o jejum é uma prática obsoleta e sem sentido, pois estaria negando a sua utilidade didática; o autêntico jejum não resulta apenas numa privação de alimentos num determinado período, mas nos favorece condições de partilha, de solidariedade e de prática da justiça do Reino. O que não se come hoje por opção de fé, não deve permanecer na despensa para ser comido amanhã, mas deve tornar-se sacrifício agradável a Deus, isto é, compartilhado com quem é obrigado a fazer jejum por condição. 
A esmola, a oração e o jejum, motivados pela fé e não simplesmente pela aparência da vaidade religiosa ou pelo prazer da recompensa imediatista, nos ajudam a recuperar o dinamismo original da vida. Não são práticas isoladas aprisionadas pelo rigorismo da lei, mas atitudes que nos humanizam. A esmola nos ajuda a estabelecer relacionamentos autênticos com o semelhante com quem devo repartir o que foi colocado à disposição de todos. Não é dar do que me sobra, mas reconhecer efetivamente que acima do meu está o nosso. Portanto, as mãos que repartem verdadeiramente não podem estar ocupadas com uma trombeta a chamar atenção para si. A esquerda não sabe o que faz a direita, porque ambas estão empenhadas em repartir e não em competir. 
A oração nos coloca diante de Deus para adorá-lo e não diante dos outros para sermos vistos. A autêntica atitude orante nos coloca de joelhos, faz-nos humildes diante do Pai e não nos permite colocar-nos de pé diante dos homens para que nos vejam e nos louvem. Esquinas e praças e até sinagogas podem nos motivar a falar, mas não necessariamente a falar com Deus.  
O jejum nos favorece a experiência do desapego de si mesmo, desperta em nós a  capacidade de tomar decisões e fazer escolhas e não apenas nos deixarmos conduzir por impulsos instintivos, é o exercício mais eficaz para darmos passos qualitativos no nosso processo de ser gente e não apenas de sermos animais. Portanto, não nos desfigura nem muito menos nos torna tristes, mas pelo contrário, nos configura Àquele que “sendo Deus se esvaziou e tornou-se servo, assumindo a nossa condição” (Fl 2,7). E como diz ainda São Paulo: “Em verdade, somos por Deus o bom odor de Cristo... Não somos como aqueles que falsificam a palavra de Deus...” (2Cor 2,15.17). 
A Quaresma não é um parêntese para fazermos um esforço temporário de ser bonzinhos ou piedosos de vitrine, mas um caminho de aprendizado para nos tornarmos cada vez mais filhos de Deus, superando a hipocrisia da religião de aparência, e assumindo um processo de conversão de nossas atitudes e relacionamentos para com os nossos semelhantes, para com Deus e para consigo mesmo.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana