Pentecostes: Jo 20,19-23 - A Páscoa apenas começou...

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A Solenidade de Pentecostes não é apenas uma simples conclusão do Tempo Pascal, mas tem caráter profético, ou seja, anuncia que a Páscoa do Senhor não se encerra, pois é constantemente atualizada na Igreja pela ação do Espírito Santo, o principal dom concedido na ressurreição e confirmado no Pentecostes. Durante esses cinquenta dias de Páscoa, não fizemos um percurso de distanciamento do evento morte-ressurreição do Senhor, mas pelo contrário, temos sido conduzidos pedagogicamente à sua dimensão mais profunda: os efeitos da ressurreição do Cristo-cabeça em nós, membros do seu Corpo. Por ser fonte e ápice de toda a vida cristã, o Mistério Pascal não se encerra num tempo, mas abrevia-se no tempo para podermos mergulhar nele e sermos inundados por ele: a primordial obra do Espírito Santo. 
A perícope do evangelho de hoje nos remete ao início do tempo cuja conclusão cronológica estamos recordando hoje: “Ao anoitecer daquele primeiro dia da semana”. É o mesmo texto proclamado na Oitava da Páscoa (excetuando-se os versículos 24-31: o encontro com Tomé). Portanto, não estamos no fim, pois o dom do Espírito não nos é dado no fim, mas marca definitivamente todo começo do agir de Deus. Celebrar o Pentecostes é reconhecer que um novo começo está se realizando. A revelação bíblica testemunha, em várias passagens, que a presença do Espírito assinala sempre o irromper de um princípio (grego: arché, fundamento, começo, início). Superando uma tendência reducionista de conceber o tempo como quantidade (aspecto cronológico), indica um fundamento, algo que nos empurra para além dos limites de tempo e espaço, pois nos mergulha na esperança, na eternidade.
Assim como no primeiro dia da semana, Jesus ressuscitado sopra sobre os discípulos e lhes diz “Recebei o Espírito Santo”, indicando o início de sua nova presença no mundo (inaugurando a nova criação), também no princípio de tudo “Um vento de Deus (hebraico: Ruah, sopro) pairava sobre as águas” (Gn 1,2) a fim de fecundar e chamar à existência tudo o que há. Assim como antes, “A terra estava sem forma (hebraico: tohu, caos) e vazia (hebraico: bohu, deserto) e as trevas (hebraico: hoshekh, escuridão) cobriam o abismo”, agora Jesus ressuscitado, aparecendo aos discípulos no cenáculo, rompe as trevas da morte. Vale notar que a Bíblia Grega (LXX) traduziu “a terra era sem forma” por “a terra era invisível” (γῆ ἦν ἀόρατος). Tudo isso representa muito bem o que foi a experiência tanto de Maria Madalena, que vai ao sepulcro ainda quando era treva (grego: skotia, escuridão, Jo 20,1), quanto a dos discípulos, que se encontram no anoitecer daquele primeiro dia e, portanto, fazem a experiência da não criação ou do caos original.
Como no princípio tudo é marcado pela Palavra criadora de Deus que chama à existência todas as coisas a começar pela luz (“Faça a luz”), assim o primeiro dia da Nova criação é marcado pelo aparecimento da Luz, não mais como primeira criatura, mas como Aquele que é o “Primogênito de toda criatura, a Imagem do Deus invisível” (Cl 1,15). O próprio Jesus, no evangelho de João, já havia indicado esta nova realidade: “Eu sou a luz do mundo, quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). Se na primeira criação a ação de Deus é descrita como uma separação (luz-trevas, dia-noite, terra-água, macho-fêmea), isto é, superação do caos (confusão, a falta de identidade dos seres), a nova criação leva à plenitude esta obra iniciada, nela se realizou a grande reconciliação de toda a humanidade e de toda “a criação que em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus” (Rm 8,19). O dom da paz do Ressuscitado (duas vezes referido nessa perícope) é a grande prova de que a criação alcançou a sua plenitude, pois “Ele é a nossa paz... a fim de criar em si mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar ambos com Deus em um só Corpo, por meio de sua cruz” (Ef 2,14s). Os discípulos ao verem o Senhor, que lhes mostrara as mãos e o lado, exultaram de alegria. A alegria na Bíblia é a manifestação de um bem alcançado, distingue-se de uma simples satisfação ou de prazer momentâneo. A alegria dos discípulos é a alegria que nasce do encontro com o Ressuscitado, cujas marcas da cruz não desapareceram, pois são a comprovação de que não é um outro, mas o mesmo Senhor. Como na primeira criação, Deus viu que tudo que fizera era bom e, portanto, exultava em afirmá-lo (Gn 1,4.10.12.18.21.25.31), assim agora na nova criação, os discípulos veem (mesmo verbo grego na LXX e no evangelho: horao, ver) a obra de Deus realizada e, portanto, a promessa de Jesus se cumpre neles: “Eu vos digo isso para que a minha alegria esteja em vós e vossa alegria seja plena”(Jo 15,11).  
Receber do Ressuscitado o dom do seu Espírito é assumir a sua missão: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. O Espírito Santo não nos é dado como prêmio por ter realizado algo, nem muito menos um “poder” para realizar coisas extraordinárias em nós, fazendo-nos mais importantes do que os outros nos quais não se evidenciam coisas “espirituais” espetaculares. Mas é força do alto para nos ajudar a realizar a obra da nova criação, continuar no tempo e na história a missão de Jesus: a reconciliação, isto é, o perdão dos pecados, primeiro passo para levar à plenitude a nova criação. 
A Solenidade de Pentecostes não é a festa do padroeiro de um Pentecostalismo aprisionado a sentimentalismos e manifestações pseudorreligiosas extraordinárias, de portas fechadas, só para os iniciados. Mas é a grande convocação para a missão que o Pai confiou ao Filho, abrindo as portas e arregaçando as mangas, sem ter medo de ferir as mãos e o lado, isto é, assumir também as marcas do crucificado.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana