Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo - Lc 2,1-14: O Dogma dos poderosos x A Glória do Onipotente

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A tão familiar narração lucana do nascimento de Jesus na cidade de Belém, proclamada na solene liturgia da noite de Natal, pode parecer-nos um belíssimo quadro bucólico (do grego boukolikos: pastoril, rústico; o bucolismo é um gênero literário poético em que os autores exaltam a vida no campo, a simplicidade e ingenuidade dos costumes, a tranquilidade e riqueza do contato com a natureza e os hábitos peculiares dos pastores). Por conseguinte, o presépio não seria nada mais do que uma paisagem romântica e fonte de muitas inspirações líricas. Contudo, a deliberada e consciente introdução que o próprio evangelista faz antes de pintar a sua (talvez) cena bucólica: “Naqueles dias apareceu um edito (grego: dogma) de César Augusto ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado”, dá ao seu quadro uma série de elementos que o transformam de aparente obra pitoresca em proclamação profética e provocadora cujo alcance chega até nós hoje. É anúncio-convocação para a luta contra aquela cultura de morte, liderada por poderes políticos e econômicos de todos os tempos e lugares, que ao longo da história da humanidade fazem seus decretos, suas leis e emendas para permanecerem no poder ainda que seja preciso tirar a vida, a liberdade e a dignidade de pessoas, povos e nações.  
O decreto do imperador confirmava o seu domínio político e econômico sobre todo “o mundo habitado”, pois com o recenseamento fazia-se o controle de pessoas e de seus respectivos bens. A exploração através de tributos e impostos sobre tudo e todos provia o aparato de sustentação do poder dominante. Quanto mais impostos, mais mordomias, mais possibilidades de corrupção e desmando do poder público. Com efeito, o decreto imperial favorecia às autoridades, mas não garantia o bem comum. Em confronto com essa ordem imperial, temos a palavra do Anjo do Senhor aos pastores: “Não tenhais medo! Eis que eu vos anuncio” (grego: euangelizomai, evangelizar); ao invés de um decreto autoritário que ordena, faz-se a proclamação da chegada de um novo tempo: “hoje nasceu para vós um Salvador”, marcando profundamente este novo início com uma alegria indizível não apenas para um pequeno grupo, mas “para todo o povo”. Se o imperador decretou que todo o mundo deveria estar sob o seu controle e domínio, agora a boa-notícia, também ela de caráter universal, proclama quem verdadeiramente é Senhor, isto é, o Salvador, que foi enviado (Cristo) de Deus e que não depende de nenhuma investidura e reconhecimento do poder do imperador. Nascendo em Belém, nas periferias do centro de poder religioso (Jerusalém) e distante do poder político (Roma), este recém-nascido é, na verdade, o herdeiro do seu pai Davi, o qual fora escolhido para ser rei por ser, antes de tudo, um pastor: “Escolheu a Davi, seu servo, tirou-o do aprisco das ovelhas; da companhia das ovelhas fê-lo vir para apascentar Jacó, seu povo, e Israel, sua herança” (Sl 78,70-71).
Se o dogma do imperador tornava o povo apenas uma cifra numérica, fácil de manipular e explorar, a proclamação da Palavra do Cristo-Senhor, a Boa-nova, será dirigida a pessoas concretas, com suas caraterísticas, necessidades e condições reais: “Porque Ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, libertar os oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19; Is 61,1-2). É Boa-nova que se contrapõe ao dogma imperial, pois denuncia a palavra oficial do imperador que torna os pobres cada vez mais pobres, com altos tributos e impostos, que reforça as cadeias dos presos, símbolo da incompetência de quem governa sem se comprometer com a edificação da fraternidade, mas apenas com os seus interesses espúrios, favorecendo somente condições para a marginalização e a criminalidade. 
Porém, é o recém-nascido que terá a Palavra misericordiosa capaz de libertar, no hoje de Deus, os presos de suas piores amarras, pois tem autoridade de afirmar: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). O decreto autoritário de César Augusto não produz nenhuma realidade de bem verdadeiro (Shalom) para o povo, pois mantém os dominados sob um forte aparato policial a fim de impedir toda e qualquer manifestação contrária à sua ordem estabelecida (Pax Romanae). Mas é a Palavra do recém-nascido que indicará o caminho para a verdadeira paz, a qual se constrói com atitudes concretas de compromisso com o Reino de Deus, e não com discursos evasivos e estéreis.
A paz trazida pelo recém-nascido reclinado na manjedoura não se confunde com a paz da ideologia do império, pois não é sentimentalismo alienante, mas fogo trazido à terra, resultado de um batismo que recebeu, a sua morte na cruz (Lc 12,49-50). Paz como resultado de um conflito assumido, enfrentado e, portanto, vencido, mesmo que provoque divisão e separação: “Pois pensais que vim estabelecer a paz sobre a terra? Não, eu vos digo, mas uma divisão (Lc 12,51). Destarte, o louvor dos anjos na noite de Belém: “Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens que ele ama”, não é expressão sentimental diante de uma cena romântica, mas anúncio profético de que Deus realizará o seu projeto plenamente quando o recém-nascido, envolto em faixas e reclinado na manjedoura, tiver sido “envolto num lençol e colocado numa tumba talhada em pedra” (Lc 23,53), e, vencendo a morte, Ele mesmo proclamará: “A paz esteja convosco” (Lc 24,36). Anúncio que não é um dogma de poderosos mundanos, mas manifestação da Glória do Onipotente das Alturas, que enviou o seu Filho, nascido entre nós, motivo e razão de grande alegria e que nos faz vencer todo medo. ALEGRAI-VOS. NÃO TEMAIS. É NATAL!!!



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana