Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
As duas cenas do evangelho de hoje, aparentemente poderiam ser lidas separadas: os discípulos que colhem espigas em dia de sábado (2,23-28) e o homem da mão seca (3,1-6), porém, a liturgia nos convida a meditá-las como se contempla um quadro composto em díptico, para penetrar numa dimensão mais profunda do anúncio do evangelho que se serve dessas duas situações distintas, mas intimamente relacionadas. Não é por nada que Marcos as colocou numa sequência a fim de melhor evidenciar o ensinamento de Jesus sobre a compreensão adequada da Lei, o relacionamento autêntico com a Criação e o valor incomensurável da vida humana na sua totalidade destinada à salvação eterna.Antes de tudo, os dois acontecimentos se dão em dia de sábado (2,23; 3,2), dia por excelência para fazer memória da Criação, pois depois que Deus encerrou a sua obra, “descansou” (Gn 2,1). Portanto, o sábado recebe um caráter todo especial como ápice de uma semana de trabalho. Ao afirmar que “o sábado foi feito para o homem”, Jesus não secundariza a verdade fundamental, isto é, antes de ter sido criado para o homem, o sábado está marcado por um agir de Deus: “Deus abençoou o sétimo dia e o santificou” (Gn 2,2). Literalmente esses dois verbos (abençoar e santificar, hebraico bark e qadash, respectivamente falar bem e separar para si) indicam o relacionamento de Deus com toda a sua criação, sobretudo com o ser humano, única criatura da qual se diz: “criado à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27), e do qual o próprio Deus diz: “Muito bom” (Gn 1,31, literalmente hebraico tov meod: “Grande bem”). Além do mais, também o sábado era o dia de louvar a Deus por seus feitos grandiosos (Criação, Êxodo, Aliança...). A compreensão adequada da Lei garante a unidade indissolúvel entre Criador e criatura, entre o fazer do Criador e o ser e o fazer da criatura, obra de suas mãos. Referir-se a uma realidade (Deus) sem reconhecer a dependência natural da outra (ser humano e demais seres) é cair nos equívocos ideológicos, ou seja, no relativismo que nega a verdade fundamental da hierarquia dos valores ou de um absolutismo rigorista que destrói a vida, negando-lhe a sua superioridade determinada pelo seu Criador.A acusação dos fariseus: “Vê! Como fazem eles o que não é permitido no sábado”, na verdade implica uma crítica ao Mestre, que não intervém para impedir uma transgressão da Lei (No tempo de Jesus os rabinos tinham listado 39 tipos de atividades proibidas no sábado, subdividindo-as em 39 classes chegando a 1521 trabalhos proibidos). Por sua vez, a observância do repouso sabático se tornou um eixo de toda a Lei, portanto, descumpri-lo era desrespeitar todos os outros mandamentos. A justificativa de Jesus: “Nunca leste...” compromete o conhecimento dos fariseus em relação à Escritura, da qual se consideram doutores. Mais do que saber a letra, é preciso conhecer os fatos da vida que a antecedem e se tornam o fundamento da verdade contida na Lei. O Filho do homem é Senhor do sábado, como o seu Pai que tudo criou inclusive o sábado para nele contemplar o que foi feito. O homem na sinagoga em dia de sábado, é o símbolo do aprisionamento que os fariseus fizeram com a sua interpretação da Lei. A mão atrofiada impede duas atividades fundamentais do ser humano: não consegue trabalhar (colher espigas), por isso, ferido na sua dignidade de imagem e semelhança de Deus que com mão poderosa criou os céus, libertou o povo da escravidão do Egito. Ademais, não trabalhar é não ter como sobreviver (alimento, moradia etc.). A segunda atividade, a participação ativa no culto, pois com a mão atrofiada não consegue tocar a harpa para acompanhar os salmos, no louvor de Deus. “Se de ti Jerusalém algum dia eu me esquecer que resseque a minha mão direita” (Sl 137,5: povo no exílio sem razões para cantar, louvar a Deus). Seja na primeira cena (discípulos-espigas) quanto na segunda (homem-mão atrofiada), a pergunta provocativa de Jesus: “É permitido, no dia de sábado, fazer o bem ou o mal, salvar ou matar?” constitui a chave de leitura de todo o díptico. Os fariseus já tinham respondido, de antemão, negativamente: “O que não é permitido fazer no sábado”. Jesus recordando o motivo da transgressão de Davi, a fome dos seus companheiros, não apenas relativiza o mandamento, mas o relaciona com o valor superior: o bem, a salvação. Colocando o homem da mão atrofiada no meio, Jesus não o desloca apenas espacialmente, mas recupera a sua dignidade e missão no centro da Criação, como fez Deus ao criar Adão, colocando-o no centro do Jardim do Éden para que o cultivasse, e dando-lhe permissão de comer de todas as árvores do Jardim. Contudo, Adão estava ali também para cultuar a Deus, sendo-lhe obediente, respeitando a sua vontade com o único fim: para que não morresse. O trabalho (espigas arrancadas) e o louvor de Deus (mão reestabelecida) testemunham o bem e a salvação que o Filho do Homem realiza acima de tudo, pois ele é o Senhor.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana
As duas cenas do evangelho de hoje, aparentemente poderiam ser lidas separadas: os discípulos que colhem espigas em dia de sábado (2,23-28) e o homem da mão seca (3,1-6), porém, a liturgia nos convida a meditá-las como se contempla um quadro composto em díptico, para penetrar numa dimensão mais profunda do anúncio do evangelho que se serve dessas duas situações distintas, mas intimamente relacionadas. Não é por nada que Marcos as colocou numa sequência a fim de melhor evidenciar o ensinamento de Jesus sobre a compreensão adequada da Lei, o relacionamento autêntico com a Criação e o valor incomensurável da vida humana na sua totalidade destinada à salvação eterna.
Antes de tudo, os dois acontecimentos se dão em dia de sábado (2,23; 3,2), dia por excelência para fazer memória da Criação, pois depois que Deus encerrou a sua obra, “descansou” (Gn 2,1). Portanto, o sábado recebe um caráter todo especial como ápice de uma semana de trabalho. Ao afirmar que “o sábado foi feito para o homem”, Jesus não secundariza a verdade fundamental, isto é, antes de ter sido criado para o homem, o sábado está marcado por um agir de Deus: “Deus abençoou o sétimo dia e o santificou” (Gn 2,2). Literalmente esses dois verbos (abençoar e santificar, hebraico bark e qadash, respectivamente falar bem e separar para si) indicam o relacionamento de Deus com toda a sua criação, sobretudo com o ser humano, única criatura da qual se diz: “criado à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27), e do qual o próprio Deus diz: “Muito bom” (Gn 1,31, literalmente hebraico tov meod: “Grande bem”). Além do mais, também o sábado era o dia de louvar a Deus por seus feitos grandiosos (Criação, Êxodo, Aliança...). A compreensão adequada da Lei garante a unidade indissolúvel entre Criador e criatura, entre o fazer do Criador e o ser e o fazer da criatura, obra de suas mãos.
Referir-se a uma realidade (Deus) sem reconhecer a dependência natural da outra (ser humano e demais seres) é cair nos equívocos ideológicos, ou seja, no relativismo que nega a verdade fundamental da hierarquia dos valores ou de um absolutismo rigorista que destrói a vida, negando-lhe a sua superioridade determinada pelo seu Criador.
A acusação dos fariseus: “Vê! Como fazem eles o que não é permitido no sábado”, na verdade implica uma crítica ao Mestre, que não intervém para impedir uma transgressão da Lei (No tempo de Jesus os rabinos tinham listado 39 tipos de atividades proibidas no sábado, subdividindo-as em 39 classes chegando a 1521 trabalhos proibidos). Por sua vez, a observância do repouso sabático se tornou um eixo de toda a Lei, portanto, descumpri-lo era desrespeitar todos os outros mandamentos. A justificativa de Jesus: “Nunca leste...” compromete o conhecimento dos fariseus em relação à Escritura, da qual se consideram doutores. Mais do que saber a letra, é preciso conhecer os fatos da vida que a antecedem e se tornam o fundamento da verdade contida na Lei.
O Filho do homem é Senhor do sábado, como o seu Pai que tudo criou inclusive o sábado para nele contemplar o que foi feito.
O homem na sinagoga em dia de sábado, é o símbolo do aprisionamento que os fariseus fizeram com a sua interpretação da Lei. A mão atrofiada impede duas atividades fundamentais do ser humano: não consegue trabalhar (colher espigas), por isso, ferido na sua dignidade de imagem e semelhança de Deus que com mão poderosa criou os céus, libertou o povo da escravidão do Egito. Ademais, não trabalhar é não ter como sobreviver (alimento, moradia etc.). A segunda atividade, a participação ativa no culto, pois com a mão atrofiada não consegue tocar a harpa para acompanhar os salmos, no louvor de Deus. “Se de ti Jerusalém algum dia eu me esquecer que resseque a minha mão direita” (Sl 137,5: povo no exílio sem razões para cantar, louvar a Deus).
Seja na primeira cena (discípulos-espigas) quanto na segunda (homem-mão atrofiada), a pergunta provocativa de Jesus: “É permitido, no dia de sábado, fazer o bem ou o mal, salvar ou matar?” constitui a chave de leitura de todo o díptico. Os fariseus já tinham respondido, de antemão, negativamente: “O que não é permitido fazer no sábado”. Jesus recordando o motivo da transgressão de Davi, a fome dos seus companheiros, não apenas relativiza o mandamento, mas o relaciona com o valor superior: o bem, a salvação. Colocando o homem da mão atrofiada no meio, Jesus não o desloca apenas espacialmente, mas recupera a sua dignidade e missão no centro da Criação, como fez Deus ao criar Adão, colocando-o no centro do Jardim do Éden para que o cultivasse, e dando-lhe permissão de comer de todas as árvores do Jardim. Contudo, Adão estava ali também para cultuar a Deus, sendo-lhe obediente, respeitando a sua vontade com o único fim: para que não morresse. O trabalho (espigas arrancadas) e o louvor de Deus (mão reestabelecida) testemunham o bem e a salvação que o Filho do Homem realiza acima de tudo, pois ele é o Senhor.

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana