Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
No coração do Evangelho de São Lucas encontramos uma das mais belas de suas páginas: o capítulo 15 que reúne, segundo alguns, três parábolas chamadas “Parábolas da Misericórdia” (ovelha perdida, dracma perdida, 2 filhos perdidos). Contudo, dada a intrínseca relação que existe entre elas, podemos dizer que, na verdade, é uma única parábola em três tempos, muito bem elaborada onde as duas primeiras partes apresentam individualmente elementos que serão retomados de forma sintética e conclusiva na terceira parte, chegando ao ápice do ensinamento de Jesus que se aplica diretamente àquele auditório especificado pelo próprio evangelista: “Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus”. Apesar de ouvirmos na liturgia deste Domingo apenas a introdução (15,1-3) e a terceira parte (15,11-32), devemos ter presente todo o conteúdo do capítulo 15 para podermos alcançar a profunda mensagem do ensinamento de Jesus cujo objetivo é dirigir um apelo de conversão a todas as pessoas que, mesmo diante de seus pecados e misérias, e inclusive as que, por orgulho, não se reconhecem necessitadas de arrependimento e perdão, são buscadas pela misericórdia do Pai que tem sempre a convicta esperança de reencontrar os seus filhos, estejam eles distantes ou próximos. Jesus está ensinando diante de um auditório aparentemente paradoxal (pecadores x santos), porém a(s) parábola(s) diz(em) justamente o contrário, pois não há diferença essencial entre eles, uma vez que todos foram perdidos ou se perderam por serem pecadores; o pecado alcançou a todos nós como diz São Paulo: “Todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Rm 3,23). A perda de coisas (ovelha e dracma) prepara os ouvintes para tomarem consciência de uma perda maior: a do ser humano que se perde à medida que se afasta do seu semelhante-irmão (1 de 100 ovelhas, 1 de 10 dracmas), e do seu Criador-Pai (filho mais novo sai de casa e o filho mais velho não quer entrar em casa).Pecado/pecar tanto em hebraico (raiz chet) quanto em grego (hamartia) significa “errar o alvo”, ou seja, não atingir o objetivo. Na nossa vida o alvo fundamental para o qual devemos nos direcionar é o relacionamento com Deus (Pai) e com o nosso semelhante (irmão). Todas as vezes que assumimos atitudes que ferem a filiação adotiva e a fraternidade universal erramos o alvo, portanto, pecamos. É a atitude do filho mais novo que querendo fazer a sua vida segundo os seus critérios hedonistas, egoístas e ingratos, declara o rompimento do relacionamento com o pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe”. Além de decidir sair de casa, ainda declara a morte do pai, pois ele não pede apenas algum dinheiro para se virar longe de casa, mas ele pede a parte da herança (grego: ousia, propriedade, bens para viver). Antecipa a morte do pai, pois exige dele que execute um testamento para assegurar a parte que lhe cabe (Hb 9,16.17: “Onde há testamento, é preciso que seja constatada a morte de quem fez o testamento, pois um testamento só tem valor depois da morte”). Por isso, se diz que o pecado mortal destrói o amor de Deus em nós, consequentemente perdemos a vida (eterna), daí as palavras dramáticas do filho mais novo: “Pai, pequei, contra Deus e contra ti, já não mereço ser chamado teu filho”. E o pai não nega essa verdade na volta do filho: “Porque este meu filho estava morto... estava perdido”. Ainda que destruamos o amor de Deus pelo nosso pecado, Deus não destrói o seu amor por nós, pois jamais deixará de nos chamar de filhos, como afirma o pai da parábola. Se por um tempo o filho mais novo não chamava mais o seu pai assim, foi justamente quando estava na penúria que, tomando consciência do seu pecado, fez memória do amor do pai quando estava em casa: “Na casa do meu pai tem pão com fartura”. Não foi simplesmente o reconhecimento do seu pecado que o fez levantar, mas a certeza de que era amado por seu pai que lhe deu coragem de retornar para casa. O filho mais novo já tinha sido apresentado simbolicamente na ovelha perdida no deserto, longe de casa, mas recuperada pelo amor do seu pastor (pai) que é capaz de deixar tudo para ir ao seu encontro: “Quando ainda de longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e o cobriu de beijos”. O filho mais novo representa os ditos pecadores e publicanos da introdução da parábola; considerados perdidos pois estão longe do templo, não conhecem nem cumprem a Lei, são pecadores de carteirinha.O filho mais velho, ainda que tivesse permanecido em casa, trabalhado há anos para o pai, sendo-lhe absolutamente obediente, assemelha-se essencialmente ao irmão pródigo, pois não é capaz de reconhecer o amor paternal, a misericórdia sem limites do pai. Se o mais novo rejeita a paternidade do seu verdadeiro pai e cai nas garras de um patrão impiedoso, o mais velho ainda que amado pelo pai dentro de casa, opta por ficar fora da casa acusando o próprio de patrão mesquinho. Nas suas duras e raivosas palavras percebemos em que consiste a sua perda (pecado): “Este teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado”. Em nenhum momento ele se reconhece irmão do outro que chegara; e nenhuma de suas palavras dirigidas ao pai evidencia relação de filiação, mas de empregado (sempre te servi e obedeci). Portanto, o filho mais velho foi apresentado na dracma perdida e indica a outra parcela que compõe o auditório (fariseus e mestres da Lei), isto é, daqueles que se pensam dentro de casa, na proximidade, na observância da lei, no culto, santos e irrepreensíveis, mas que não se sentem filhos, apenas cumpridores de ordens. Este tempo da Quaresma nos favorece a experiência da humildade de nos reconhecermos pecadores, perdidos, mas confiantes de que o amor de Deus sempre vem ao nosso encontro, vem nos procurar insistentemente, mas não nos trata como animais que devem ser transportados a força, nem como coisas que não tem poder de decisão, mas espera que demos um pequeno passo na sua direção a fim de recuperar a nossa condição de filhos e de irmãos, na certeza e esperança de que Ele jamais vai deixar de ser nosso Pai, abraçando-nos e cobrindo-nos de beijos (proximidade), colocando o anel da fidelidade-filiação em nosso dedo, as sandálias de pessoas livres (escravos vivem descalços) e a roupa da dignidade de filhos (proteção e condição).
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana