Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Dedicando a sua Obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos) a um importante personagem chamado “Teófilo”, o evangelista Lucas desafia quem lê os seus escritos a tornar-se, também ele, um “teófilo”, isto é, um “amigo de Deus” (grego theos: Deus; filos: amigo). Portanto, não será possível compreender o evangelho, caso não se tome a decisão de acolher a amizade de Deus e tornar-se seu amigo. O tema da amizade de Deus está presente ao longo de todo o evangelho de Lucas. Essa amizade é, antes de tudo, a iniciativa de Deus de fazer-se próximo do ser humano, a fim de manifestar-lhe, de modo concreto, o seu amor, a sua misericórdia e bondade, condescendência e solidariedade. O próprio Jesus afirma que era acusado de ser “amigo de publicanos e pecadores” (7,34), um escândalo para aqueles que se consideravam santos, isto é, os escribas e fariseus, que o reprovavam: “Este homem recebe os pecadores e come com eles” (15,2). A amizade de Deus, manifestada no seu Filho, realiza o grande desejo do povo de Israel que anseia pelo cumprimento das promessas do Antigo Testamento, indicado pelo profeta Isaías que, em nome de um povo que se sentia distante do seu Deus, desabafa: “Há muito que somos um povo sobre o qual não exerces o teu domínio, sobre o qual não se invoca o teu nome. Oxalá que fendesses o céu e descesses” (Is 63,19). Um povo sofrido, marginalizado e abandonado por todos, mas que nutre a esperança de que um dia o seu Deus o visitará, a fim de restituir-lhe a dignidade e a alegria de viver. Esta será a melhor notícia, o verdadeiro evangelho: “Como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação...” (Is 52,7).Na sinagoga de Nazaré, ao proclamar a Palavra de Deus já anunciada pelo Profeta Isaías, o profeta Jesus anuncia a Boa-Nova de que o amanhã imprevisível das promessas do ontem, Antigo Testamento, realiza-se no hoje de sua presença e missão: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura” (4,21). A reação de admiração dos seus ouvintes não está relacionada à proclamação de um novo texto das Escrituras, pois certamente, no ciclo da leitura sinagogal, esta passagem de Isaías (61,1-2) era bastante conhecida. Mas o encanto das pessoas estava justamente no modo coerente de Jesus ler as Escrituras. Não era apenas um conjunto de explicações incompreensíveis, mas uma palavra que se traduzia nas suas atitudes concretas. Aquela Palavra distanciada por falta de compreensão, pois os mestres que a proclamavam não a praticavam, agora na boca de Jesus, era reconhecida pelo povo como Boa-Nova de salvação para os pobres. Era palavra que liberta os presos da ignorância. Esta, muitas vezes, era favorecida pelo eruditismo dos escribas e mestres da Lei que enganavam o povo, impondo-lhe fardos pesados. Essa Boa-Nova de Jesus dirigida aos pobres “proclama a remissão aos presos” e denuncia aqueles que aprisionam os ignorantes: “Ai de vós, legistas, porque tomastes a chave da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar” (11,52).Diante de uma sociedade marcada pela cegueira provocada pela manipulação ideológica dos que governam, a Boa-Notícia do Profeta Jesus “proclama a recuperação da vista aos cegos”, propondo um novo estilo de vida pautado no seu seguimento, assim como o cego de Jericó que “no mesmo instante recuperou a vista e seguia a Jesus, glorificando a Deus” (18,43).Opondo-se a uma sociedade desejosa de uma falsa liberdade dependente do acúmulo de bens materiais (12,13-21), de prazeres inconsequentes (15,13) e da ostentação que avilta o semelhante (16,19-31), “a proclamação da verdadeira libertação aos oprimidos” aponta para o caminho do desapego e da solidariedade: “Vendei vossos bens e dai esmolas. Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro inesgotável nos seus céus...” (12,33).Jesus finaliza a sua leitura com a grande proclamação: “Um ano da graça do Senhor”. Omitindo a última frase do texto de Isaías proclamado: “e um dia de vingança do nosso Deus” (Is 61,2b), ratifica aquilo que será a marca fundamental da sua missão: realizar a visita do Deus Todo-Poderoso e, portanto, capaz de perdoar, redimir. Esta era uma das finalidades do Ano do Jubileu (ver Dt 15,1; Lv 25,1-7). Destarte, o perdão misericordioso de Deus é a prova suprema da sua Onipotência, pois só Ele tem a força para levantar o caído, restituindo-lhe a vida, como fez o Bom Samaritano: “Movido de compaixão, aproximou-se, cuidou de suas chagas...” (10,34). Sem dúvida, a característica mais marcante da revelação de Jesus no evangelho de Lucas é esta proximidade de Deus. Um Deus que por causa do “seu misericordioso coração nos visita... Para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, para guiar nossos passos no caminho da paz” (1,78-79). A visita de Deus, segundo a perspectiva de Lucas, se realiza na vinda do seu Filho ao mundo, que ao nascer, o Anjo do Senhor proclamou: “Não temais! Eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador!” (2,10-11). Esta visita continua acontecendo quando aceitamos a sua amizade e nos tornamos seus amigos, acolhendo o seu convite: “Desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa” (19,5), pois Ele é um Deus que, aproximando-se, faz-se amigo do ser humano (filo-antropos) a fim de que o ser humano se torne amigo seu (teó-filos). O evangelho de Lucas nos apresenta este itinerário de mão dupla: Deus se aproxima de nós e possibilita que nós nos aproximemos Dele. Ele quer nos acolher em nossa casa, como no encontro com os discípulos de Emaús que, aceitando entrar na casa deles, partilha com eles o pão, sinal inconfundível da sua presença acolhedora. Não quer nos encontrar num lugar distante, mas na proximidade de uma verdadeira amizade.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana