II Domingo do Tempo Comum: Jo 2,1-11 - A obediência da fé faz ressurgir a esperança

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O evangelho das Bodas de Caná é indubitavelmente um dos trechos mais conhecidos do IV Evangelho, pois além de ser-lhe exclusivo inspira muitas reflexões de acordo com o contexto no qual é proclamado. É muito comum ser lido em celebrações marianas, casamentos, missas de aniversário de matrimônio etc. De fato, a Palavra de Deus não se esgota, é uma fonte abundante que ilumina muitas situações e dimensões da vida. Contudo, considerando a intenção do autor que o chama: “Princípio dos Sinais” (grego: archè tôn semeiôn), devemos compreendê-lo como chave de leitura de todo o evangelho, cuja finalidade é revelar quem é Jesus e qual a sua missão, a fim de crermos Nele e alcançarmos a vida eterna (20,31). 
São João prefere utilizar o termo sinal (semeion) ao invés de milagre (sinóticos: dynamis), pois o seu significado vai para além de um benefício concedido a alguém que o recebe mediante a sua fé. Na verdade, o sinal não depende da fé, mas provoca a fé: “Jesus o realizou... manifestou a sua glória, e seus discípulos creram Nele”. Diante dos sinais realizados por Jesus (são 7 descritos no IV Evangelho) há sempre a possibilidade de crer ou não Nele. A resposta de fé é sempre acolhimento da salvação; a incredulidade é optar pela condenação (3,18). 
A narração inicia com três informações fundamentais que respondem às questões quando, o quê e onde? 
Quando? “No terceiro dia” (é preferível conservar a expressão original, mesmo que por questão de adaptação à leitura litúrgica se tenha substituído por “Naquele tempo”). O simbolismo numérico é muito presente na Bíblia, e mais do que quantidade pretende evidenciar uma realidade mais complexa e profunda. Na sequência dos acontecimentos descritos no início do IV Evangelho (1,29.35.43), o episódio das Bodas de Caná acontece três dias depois do último fato relatado nessa sequência, isto é, somando-se aos três dias anteriores, o dia do casamento é justamente o sexto dia. O evangelista usando esse artifício (3º que remete ao 6º) introduz dois temas importantíssimos para compreender a missão de Jesus (Criação: 6º dia Gn 1,31; Aliança: 3º dia Ex 19,16).
O quê? Tendo acenado para esses dois temas, agora o evangelista os sintetiza com a imagem do casamento, simbolismo já utilizado pelos profetas para falar alegoricamente do relacionamento de Deus com o seu povo, isto é, da Nova e Eterna Aliança (Is 60,10;62,5; Jr 31,31; Os 2,21).
Onde? “Caná da Galileia” não se refere apenas a uma localização geográfica, mas o seu significado está relacionado ao verbo hebraico qanah (adquirir: usado muitas vezes para indicar intervenção salvífica de Deus, Dt 32,6). Eva quando teve o seu primeiro filho, deu-lhe o nome de Caim (mesma raiz de qanah) porque adquiriu um homem com a ajuda de Deus (Gn 4,1). Portanto, estamos diante da realização histórica das promessas veterotestamentárias: Deus faz nova a sua criação e estabelece definitivamente a sua aliança com o seu povo através do seu Filho. 
Contudo, a vinda de Jesus ao mundo para realizar a vontade do Pai encontrou inúmeros desafios e resistências humanas. O fracasso da Antiga Aliança por infidelidade do povo é representado pela intervenção da Mãe de Jesus: “Eles não têm mais vinho”; nela, vemos o resto de Israel que permaneceu fiel à Aliança. A falta de vinho, símbolo da alegria (Sl 104,15; Is 25,6), indica a realidade da Antiga Aliança necessitada de superação.  A resposta de Jesus: “O que temos a ver com isso, Mulher? Minha hora não chegou” (literalmente: o que a mim e a ti?) não indica reprovação ao pedido implícito da mãe, até porque Ele providenciou imediatamente o vinho em abundância; na verdade, a fala da mãe de Jesus favorece o momento da revelação da sua missão, cujo ápice é a sua hora, isto é, a morte na cruz, quando não oferecerá mais o vinho bom que transborda das talhas, mas água e sangue que brotam do seu lado aberto (19,34), símbolos do batismo e da Eucaristia. 
O vocativo “Mulher” é usado por Jesus nos seus diálogos com 3 mulheres no IV Evangelho (a Mãe, a Samaritana e Maria Madalena); em síntese, representam respectivamente: o povo da Antiga Aliança que aguardava a vinda do Messias e se torna testemunha da sua chegada (3,4; 19,26), o povo judeu cismático infiel chamado à conversão (4,1s) e o povo da Nova Aliança, testemunha e arauto da ressurreição (20,1).
Jesus vem realizar a Nova e definitiva Aliança, porém não desconsidera toda a história da salvação anterior representada nas 6 talhas (auge da antiga criação), porém de pedras e vazias (coração endurecido e estéril do povo antigo); mas é a partir dessa realidade que fará surgir algo novo e superior (“Guardaste o bom vinho até agora”). 
A única exigência para que surja o novo é a obediência à sua palavra: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. Isso também era o desafio para o povo antigo: “Tudo o que o Senhor Deus disse, nós o faremos” (Ex 19,8). Porém, as tentativas faliram e a esperança ficou ameaçada. Contudo, na Nova e definitiva Aliança (o casamento ratificado em Caná e consumado na cruz) não é mais garantida pela obediência à Lei que foi dada a Moisés que resultou na caducidade das instituições judaicas e endurecimento do coração, mas o vinho novo é dado pela graça e a verdade que nos vêm por Jesus Cristo (1,17).  
Que o Jubileu da Esperança nos faça peregrinos de Caná ao Calvário, participantes das Bodas do Cordeiro a fim bebermos do vinho novo da salvação e participarmos da verdadeira alegria.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana