II Domingo da Quaresma: Lc 9,28-36 - A transfiguração do Senhor e a tentação dos discípulos

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A narração da Transfiguração do Senhor, no Segundo Domingo da Quaresma, não é para fazer um parêntese festivo no percurso quaresmal, mas antes de tudo, está muito bem inserida no caminho de preparação da Páscoa de toda a Igreja e, especialmente dos catecúmenos, que se deixam iluminar e purificar. Por isso, não podemos isolar a experiência da Transfiguração do Senhor do seu horizonte mais concreto, isto é, a paixão, morte e ressurreição do Filho eleito do Pai. 
Na Quaresma não se abre espaço para “se festejar” a Transfiguração, mas somos convidados a fazer a experiência da subida do Tabor para lá realizarmos uma parada estratégica a fim de continuar a estrada que nos leva ao Calvário. E, assim, vencendo toda a tentação de fuga e acomodação, mergulhar no mistério da ressurreição, que dá início à plenitude da vida. A experiência da manifestação da glória de Jesus não nos aliena do horizonte da vida, muitas vezes marcado por obstáculos, sofrimentos, lutas, dor e cruz. Mas reforça as nossas disposições para o combate na luta contra o mal e contra tudo aquilo que desfigura a vida humana e a criação, pois estas precisam ser transfiguradas pela força da cruz e pela luz da ressurreição.
Só entenderemos o profundo significado da Transfiguração se considerarmos com atenção o que nos é dito, de forma muito precisa, no início da narração: “E aconteceu que cerca de oito dias depois destas palavras...”. Infelizmente, por questões de adaptação das perícopes à leitura litúrgica, no lecionário, esta introdução chave foi substituída por “Naquele tempo”. Contudo, retomemos a leitura como está no seu contexto evangélico original. 
Numa leitura atenta da narração da Transfiguração, certamente far-se-ia uma pergunta: que “palavras são estas ditas há cerca de oito dias”? Em síntese, aqui se faz uma referência à profissão de fé de Pedro, ao primeiro anúncio da paixão e às exigências do seguimento de Jesus. Tudo isso coroado com a promessa de Jesus: “Eu vos digo, em verdade, alguns dos presentes não provarão a morte até que vejam o Reino de Deus”.
Tomando consigo Pedro, Tiago e João”, Jesus realiza a sua promessa de proporcionar a alguns dos presentes a confirmação de que o Reino já chegou. A escolha dos três não representa privilégio exclusivista, mas uma metodologia eficiente que corrige generalidades estéreis e imprime força e autoridade ao testemunho que deve ser dado a todos, por pessoas concretas que compartilham experiências e não apenas ideias. 
Se na Transfiguração faz-se a experiência de que o Reino chegou, a primeira exigência para constatar isto é a experiência de oração: “Subiu a montanha para orar. Enquanto orava...”. Oração que alimentava toda a vida terrena de Jesus e que, por sua vez, era ocasião de revelar aos discípulos quem Ele era. Para reconhecer os sinais da chegada do reino, é preciso sair do nível rasteiro da vida, da superficialidade irresponsável e galgar alturas que ajudem a enxergar com profundidade e amplitude. Por isso, Jesus conduz três dos seus discípulos à montanha para orar.
Não se diz explicitamente que era noite, mas o fato de “subir à montanha para orar”, em comparação com outras passagens do evangelho, faz-nos pensar que era noite, e confirma-o o fato: “Pedro e os companheiros estavam pesados de sono (grego: bebareménoi hipnô, sobrecarregados no sono). O sono na Tradição bíblica indica, muitas vezes, a realidade da morte espiritual, resultado de um estado de alienação e fuga, sobretudo diante do sofrimento e obstáculos. Tanto que os mesmos discípulos, mais tarde no horto, adormecidos, serão despertados pelo próprio Senhor, que se prepara para o grande momento do seu sofrimento e morte (Lc 22,45). Portanto, para perceber a chegada do Reino é preciso despertar, e permanecer vigilantes. Os discípulos em plena escuridão: “Ao despertarem viram a sua glória”. Para além de toda aparente vitória do mal (a noite, o peso do sono), o discípulo orante vislumbra a radiosa e brilhante vitória do seu Mestre. 
Contudo, mesmo fazendo a experiência da luz, não estão isentos da tentação do comodismo e da fuga, sobretudo quando se apegam à aparência do belo (bom): “É bom estarmos aqui”, numa tentativa (tentação) de impedir que se realize aquilo que, na conversa de Jesus com Moisés e Elias, foi anunciado: “Falavam de sua partida (grego: exodos)”. Sem o êxodo de Jesus (sua morte e ressurreição), o Reino não se realiza plenamente. A tentação das tendas pretende interromper o caminho, talvez possibilite comodidade, mas com certeza, trai o projeto do Pai, que intervém substituindo as tendas que aprisionam, pela nuvem itinerante, sinal da sua presença na caminhada do povo que se tivesse se instalado no deserto, não teria chegado à terra prometida (Ex 13,21). Contudo, o novo povo não precisa mais da coluna de fogo, pois é o Filho Eleito cujo “rosto se alterou e as vestes tornaram-se de fulgurante brancura”, a luz vinda do alto para iluminar os nossos passos (Lc 1,78). Ouvir sempre a sua voz nos ajudará a discernir os sinais da presença do seu Reino e a encontrar forças para vencer as tentações da alienação e do comodismo, que impedem a expansão do Reino. Eis, portanto, o grande desafio do nosso percurso quaresmal: na contemplação do Filho transfigurado, sermos configurados a Ele, vencendo a tentação da acomodação que desfigura aquilo que somos, isto é, a imagem e semelhança de Deus.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana