Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Este Domingo, também chamado Oitava da Páscoa, pois encerra o primeiro momento do Tempo Pascal, foi instituído no calendário litúrgico por São João Paulo II como “Domingo da Divina Misericórdia” (30.04.2000, canonização de Santa Faustina). A introdução dessa Festa, porém, não pode favorecer uma espécie de parêntese devocional a ponto de secundarizar o próprio Tempo Pascal que tem indiscutível precedência. Portanto, bem compreendida e celebrada, esta Festa nos ajuda a mergulhar ainda mais neste tempo singular, a Páscoa Daquele que, pregado na cruz e tendo o coração traspassado, de onde jorraram sangue e água, nos deu a grande prova do amor misericordioso do Pai. O Papa Francisco ao proclamar o Jubileu Extraordinário da Misericórdia (2015-16), convidou toda a Igreja a renovar-se na experiência do amor misericordioso de Deus cujo rosto é o próprio Jesus Cristo, pois na “Sagrada Escritura a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para conosco”. Na sua carta apostólica do término do referido Jubileu, o Papa Francisco afirma: “A misericórdia renova e redime, porque é o encontro de dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração do homem. Este inflama-se e o primeiro o cura” (Misericordia et misera, n. 16). A providência divina, sem dúvida, reservou para o nosso querido Papa Francisco o seu encontro definitivo com a Divina Misericórdia justamente nesta semana que nos prepara para a sua festa. Ele mesmo nos ensinou: “A morte há de ser enfrentada e preparada como uma passagem que, embora dolorosa e inevitável, é cheia de sentido” (n. 15). Celebrar o Mistério Pascal é proclamar a verdade do amor de Deus, mas também ser testemunhas de sua misericórdia. Uma das mais belas definições da misericórdia divina se expressa na experiência do encontro do coração de Deus com a miséria humana (misericors: cors-coração/ miseri: miseráveis). Podemos dizer que o evangelho de hoje é um verdadeiro ícone dessa experiência: Tomé, miserável na fé, toca o Coração de Jesus, fonte de perdão e misericórdia; a terra seca do seu coração incrédulo é irrigada abundantemente pelo sangue e água que jorraram do Coração ferido do Salvador.O capítulo 20 do evangelho de João cujas partes lemos durante esses dias da Oitava da Páscoa (I Domingo: 20,1-9; terça-feira: 20,11-18; II Domingo: 20,19-31) apresenta paralelos importantes entre as várias partes, sobretudo entre a primeira parte: o sepulcro; e a terceira parte: o cenáculo. O sepulcro cuja pedra foi removida está aberto e vazio, é símbolo da vitória de Cristo e sua ressurreição; o cenáculo cujas portas estão trancadas e com os discípulos medrosos reunidos representa a comunidade que arrisca morrer por falta de fé e que necessita encontrar-se com o Senhor ressuscitado para também ressuscitar e sair do cenáculo transformado em seu túmulo.Vejamos os paralelos: os dois discípulos correm para o túmulo, entram e não encontram o corpo de Jesus; o Cristo ressuscitado vem até os discípulos e os encontra escondidos e refugiados atrás dos muros. No sepulcro, os discípulos encontram os sinais da morte (sudário, panos), Jesus entrando no cenáculo lhes deseja a paz alcançada na cruz cujos sinais ele lhes mostra: “as mãos e o lado”. Madalena permanece junto ao sepulcro chorando, os discípulos: “exultaram por verem o Senhor”. Madalena, depois de reconhecer Jesus ressuscitado, é enviada aos discípulos para anunciar-lhes o que Jesus ordena; os discípulos recebem do próprio Senhor a missão: “Assim como o Pai me enviou também eu vos envio”, e a força para realizá-la: “Recebei o Espírito Santo”, que tem a missão fundamental de reconduzir a humanidade ao Pai pela remissão dos pecados. Esta reconciliação deve começar, antes de tudo, a partir do seio da própria comunidade, cujas divisões se enraízam na falta de fé entre os seus membros e nas práticas individualistas que ameaçam a dimensão comunitária da vivência da fé; a segunda parte do evangelho de hoje ilustra muito bem essa realidade e, ao mesmo tempo, esse desafio. Em que consiste, portanto, a incredulidade de Tomé? A sua falta de fé não é um ato isolado e pontual, mas se expressa num processo que podemos delinear a partir do próprio texto:“Tomé, um dos 12, não estava com eles quando Jesus veio”: a incredulidade de Tomé se manifesta na sua ausência da comunidade, lugar privilegiado do encontro com o Senhor que garante: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,19). A ausência da comunidade sempre foi uma decisão arriscada, já no Cristianismo primitivo se advertia diante desse perigo: “Não deixemos as nossas assembleias, como alguns costumam fazer” (Hb 10,25). Tomé aparece no IV evangelho como o discípulo que fala sempre em nome da comunidade: “Vamos também nós para morrermos com ele” (11,16); “Senhor, não sabemos para onde vai, como podemos conhecer o caminho?” (14,5); portanto, ausentar-se da comunidade, neste momento, contradiz a sua experiência enquanto seguia o Mestre. “Oito dias depois, encontravam-se os discípulos reunidos em casa, e Tomé estava com eles”: no dia especial do memorial da Ressurreição (domingo), a comunidade reunida prepara o grande momento da reconciliação com Tomé e de Tomé com o Senhor. Não é apenas o incrédulo Tomé que precisa se converter, a comunidade também precisa recuperar a fidelidade do anúncio do Senhor ressuscitado que aparecendo-lhe “mostrou-lhes as mãos e o lado”, isto é, os sinais da sua cruz. Quando Tomé retornou, lhe disseram apenas: “Vimos o Senhor”. É um grande perigo, inclusive para os dias atuais, anunciar apenas o Senhor (ressuscitado) esquecendo a sua cruz. O próprio São Paulo reconheceu esse perigo de infidelidade: “Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2,2); no seio das comunidades cristãs havia uma resistência no tocante ao anúncio da morte de Jesus na cruz, a ponto de São Paulo denunciar: “Pois há muitos dos quais muitas vezes eu vos disse e agora repito, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo” (Fl 3,18). A exigência de Tomé, isto é, só acreditaria se o Senhor que eles disseram ter visto fosse o mesmo que morreu na cruz, é louvável pois impede que a comunidade se desvie do autêntico anúncio do evangelho cujo núcleo é a morte e ressurreição do Senhor. “Se eu não vir... Se eu não puser... Não acreditarei”. Chegamos ao ápice da falta de fé de Tomé: não acreditar no testemunho da comunidade, desautorizando o seu anúncio e abrindo caminho para uma suposta fé enraizada em exigências individualistas e privilégios exclusivistas, comprometendo toda a missão que o Ressuscitado confiou à sua comunidade, cujo testemunho de fé não se apoia em manifestações extraordinárias, mas unicamente na obediência à sua palavra: “Felizes os que não viram e creram”.Assim como Tomé e os demais discípulos fizeram a experiência do encontro com a Divina Misericórdia que lhes dá provas do seu amor fiel (marcas da cruz), restitui-lhes a paz (saudação), concede o dom do Espírito (sopro vital) e lhes envia em missão, somos chamados, também nós, neste domingo da Divina Misericórdia a renovarmos o nosso compromisso de viver a fé na comunidade do Ressuscitado, sendo testemunhas do seu amor a começar entre nós através do perdão e da reconciliação a fim de que o mundo creia.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana