Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
A cada ano, o Primeiro Domingo da Quaresma nos apresenta a cena da tentação de Jesus no deserto; estamos no ano C, portanto, somos convidados a refletir essa importante experiência de Jesus segundo São Lucas, com suas importantes peculiaridades. Todas as narrativas sinóticas desse episódio (Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 1,13) emolduram-no entre o batismo e o início da vida pública de Jesus. O batismo é o momento da solene declaração do Pai: “Tu és o meu Filho”, e todo o seu ministério, tendo como ápice a sua morte e ressurreição, é a ocasião para demonstrar essa verdade, cuja tentação de distorcê-la, sobretudo abandonando o caminho da cruz, foi uma constante como observa o evangelista no final da perícope: “O diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno”. Engana-se, portanto, quem pensa que as tentações de Jesus foram apenas três e nesse momento preciso, e que o Diabo se convenceu imediatamente de ter sido vencido; pelo contrário, o tentador agora escolhe outras estratégias para tirar Jesus do caminho de fidelidade ao Pai, a fim de que assuma um falso messianismo, negue e rejeite a sua condição de verdadeiro Filho de Deus proclamada no batismo e confirmada na cruz. Ao longo do evangelho, São Lucas apresenta várias ocasiões nas quais o tentador retoma as suas investidas: os endemoniados que resistem à presença e atuação de Jesus (4,33-34); Judas que cedeu à tentação de colaborar com o plano traidor (22,1), o próprio Pedro que também foi alvo das investidas do diabo (22,31) e nos momentos finais de Jesus no horto (22,45). Ainda que todos os evangelhos sinóticos narrem as tentações iniciais de Jesus, São Lucas apresenta elementos próprios que servem de chave de leitura para a compreensão não apenas do fato, mas de temas importantes que perpassam todo o seu escrito. “Jesus, cheio do Espírito Santo... Ele era guiado pelo Espírito” (grego: pleres Pneumatos Hagiou, egeto ev tw Pneumati), apenas São Lucas dá esse destaque à presença e atuação do Espírito Santo, o que em seguida será confirmado pelo próprio Senhor na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, Ele me ungiu...” (4,18). O Espírito que pairava sobre as águas primordiais para fecundá-las (Gn 1,1-2), que desceu sobre Maria para que ela concebesse o Filho do Altíssimo (1,35), que virá sobre os apóstolos para fazê-los testemunhas do Ressuscitado (At 1,8;2,1) é o mesmo que está presente na vida e missão de Jesus (e da Igreja hoje), pois é aquele que socorre a humanidade frágil assumida pelo Filho de Deus.Vejamos como as tentações de Jesus (e nossas também hoje) não são apenas algumas possibilidades isoladas e pontuais de cometermos pecados, mas representam uma proposta de um projeto (diabólico) de destruição da criação, da vida humana e da vida eterna.Destruição da criação: Dando ordens a Jesus de transformar pedra em pão, a fim de satisfazer uma necessidade humana e legítima de alimentação, o diabo tenta separar a natureza (a obra de Deus) do agir humano (obra do homem), a fim de romper o laço intrínseco entre criador-criação-criatura, pois quando o ser humano age desrespeitando as leis do que foi criado, torna-se um adversário do Criador e uma ameaça para a criação. A Campanha da Fraternidade 2025, dentre vários objetivos, nos convidar “a explicitar a Doutrina Social da Igreja (DSI) e assumir o compromisso com a conversão integral, para a superação do pecado, em todas as suas manifestações” (CF-2025, TB p. 7). A DSI afirma: “A semelhança com Deus põe em luz o fato de que a essência e a existência do homem são constitucionalmente relacionadas com Deus do modo mais profundo... Ser criado pessoalmente por Deus para a relação com Ele, e somente nessa relação pode viver e exprimir-se” (Compêndio da DSI, 109). Por conseguinte, a autêntica ecologia integral não defende apenas o cuidado com a criação, mas deve recuperar a consciência e a responsabilidade do ser humano frente à criação, na sua relação com o Criador. Sem o respeito ao Criador, a criação se torna objeto de exploração e destruição nas mãos despóticas dos humanos desumanizados. Com esta tentação, o diabo procura disseminar a cultura do materialismo como garantia de realização plena.Destruição da vida: Não conseguindo um partner para colaborar na destruição da criação, agora o tentador investe na destruição do ser humano, ápice da criação: “Tudo te darei se te prostrares diante de mim em adoração”. O que é este tudo prometido pelo tentador ao Filho de Deus: “poder e glória dos reinos do mundo” (em grego: basileiai tes oikoumenes, reinos do mundo habitado, que no tempo de Jesus coincidiam com o território sob o domínio extensivo do Império Romano; vale notar a mesma palavra por ocasião do decreto do recenseamento em 2,1). Portanto, o diabo propõe a Jesus trocar o seu reino de justiça e paz, que garante a vida, pelo domínio opressor dos reinos do mundo que produzem escravidão e morte; deveria trocar a cruz da humildade e entrega pelo trono dos privilégios e regalias. Com esta tentação, o diabo propõe o secularismo ateu que aliena o ser o humano, fazendo-o pensar-se autossuficiente.Destruição da vida eterna: chegamos a mais atrevida das tentações, cujo objetivo é distorcer a força da Palavra de Deus, instrumentalizando-a em benefício próprio: “Atira-te daqui abaixo”; “Está escrito: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado...”. Estamos diante da forma de fundamentalismo religioso mais perversa, pura estratégia diabólica, pois o fundamentalismo é uma variante disfarçada do ateísmo prático e está muito presente nos nossos dias promovendo terríveis destruições. Apoiar-se na Palavra de Deus (“está escrito”) para fazer valer a sua própria palavra (“atira-te daqui abaixo”) é exigir a obediência de Deus, esquivando-se de obedecer a Ele; consequentemente, esse deus não existe. Atirar-se (jogar) para baixo é a ação mais diabólica possível (aqui há um jogo semântico imperceptível na tradução: tanto a palavra diabo quanto o verbo jogar têm a mesma raiz no grego: dia-bolos/ ballo). O diabo não quer apenas que Jesus colabore na destruição da criação, da vida humana, mas que o próprio Jesus faça o que o diabo faz: dividir, separar de Deus e conduzir à condenação eterna, ou seja, destruir o que Jesus veio nos trazer. Com esta perversa proposta o diabo incentiva o ser humano a pensar-se senhor de tudo e de todos, desrespeitando os seus limites e, consequentemente, lançando-se no abismo do seu próprio desespero. Que o tempo quaresmal nos ajude, guiados e fortificados pelo Espírito Santo, seguindo as pegadas do Filho de Deus, a vencer as destruidoras propostas do tempo presente.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana