Festa da Sagrada Família: Lc 2,41-52 - A Sagrada Família: a realidade do ideal

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Estamos em clima de festas natalinas, porém a liturgia nos recorda constantemente que o centro de toda a vida da Igreja é o Mistério Pascal de Cristo, que ilumina toda a sua vida e missão. Portanto, nada da vida de Jesus pode ser compreendido senão à luz da sua morte e ressurreição. Pois estes são os acontecimentos fundamentais da revelação de que Ele é o Filho de Deus, nascido numa família humana na plenitude dos tempos para salvar a humanidade (Gl 4,4). A Festa da Sagrada Família, muito bem situada na Oitava do Natal, evidencia ainda mais a verdade da encarnação. De fato, o Verbo Eterno, assumiu a nossa condição de humanos. E nada mais humano do que uma família, por isso, Ele, mesmo sendo Eterno Deus, tomou para si a nossa carne, compartilhando de tudo o que é nosso: “Pois Ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15).
O evangelho proclamado nesta festa (Ano C) é a última parte da longa introdução que Lucas faz nos dois primeiros capítulos do seu evangelho a fim de anunciar os grandes temas que tratará ao longo da sua obra. Geralmente os exegetas chamam esses dois primeiros capítulos de “Evangelhos da Infância”. Um gênero literário que, à luz dos acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Jesus, ajuda a reler os fatos da sua infância, dando-lhes um caráter profético; uma vez compreendidos na sua profundidade, anunciam que o Messias esperado, o descendente de Davi, nascido em Belém, é o Cristo morto e ressuscitado. Como o evangelho não é uma biografia de Jesus, mas o anúncio alegre daquilo que Ele ensinou e realizou como Filho de Deus feito homem, não podemos simplesmente ler estes acontecimentos da sua infância como um mero “diário de bordo”, nem muito menos concebê-los como um registro fotográfico de fatos distantes da sua tenra idade. Por isso, esses dois primeiros capítulos só têm sentido se nos ajudarem a ler todo o evangelho. Por outro lado, só a veracidade da paixão, morte e ressurreição de Jesus nos ajudará a reconhecer a verdade desses acontecimentos narrados por Lucas no princípio do seu evangelho.
O primeiro e fundamental tema evocado nessa perícope é a Páscoa: “Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa”. A Lei obrigava a “Três vezes ao ano todo varão comparecer diante de Javé” (Festa da Páscoa, Semanas e Tendas: Dt 16,16). Ainda que a cada ano se dirigissem a Jerusalém para cumprir este preceito, esta vez se reveste de uma caráter todo especial: “Quando o menino completou doze anos”. Na tradição dos judeus o menino e a menina quando atingem esta idade (precisamente 12 anos para a menina e 13 para o menino) devem passar pela cerimônia judaica do Bar Mitzvah (filho do mandamento) que marca a passagem de um garoto à vida adulta. A partir dessa idade, ele assume sua maioridade religiosa e passa a ter responsabilidades perante sua comunidade e suas tradições. Antes da festa, por período que pode chegar a um ano, o garoto estuda a língua hebraica e a Torá. Na cerimônia, ele realiza sua primeira leitura pública de um texto sagrado. Daí a admiração de José e Maria quando encontram o seu filho entre os doutores, não apenas lendo, mas interrogando-os. A admiração é também dos doutores da Lei e “todos que o ouviam ficavam extasiados com a sua inteligência e as suas respostas”.  
O evangelista não diz o conteúdo da discussão. Porém, não seria forçoso pensar que o tema da páscoa estivesse no centro dos debates. Mais adiante, no relato da Transfiguração de Jesus, Lucas é o único a especificar sobre o que o Mestre, Moisés e Elias (Representantes da Torá e dos Profetas) conversavam: “Falavam de sua partida (grego: Êxodos) que iria se consumar em Jerusalém” (Lc 9,30-31). Portanto, a Páscoa para Lucas não é simplesmente o memorial da saída do Egito, mas a realização plena da ação libertadora de Deus em favor do seu povo que se dá justamente no final do evangelho quando Jesus realiza a sua páscoa: “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” (Lc 22,15). 
Como a comunidade dos discípulos passa a angústia de sua ausência por três dias entre a sua morte e ressurreição, assim também Maria e José antecipam esta experiência pascal de morte e vida, de perda e reencontro quando retornando de Jerusalém se dão conta que o menino Jesus não está com eles e apenas “Três dias depois o encontraram no Templo”. Assim como a morte e a ressurreição de Jesus tornam-se a chave de interpretação de toda a Escritura: “E, começando por Moisés e por todos os profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito”, a experiência pascal de José e Maria tornou-se momento de revelação da missão do seu Filho: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?”. Contudo, afirma Lucas: “eles não compreenderam a palavra que ele lhes dissera”, pois há um longo caminho pela frente a ser percorrido que exige mais do que tentativa de compreensão. É necessário ter atitudes de confiança, obediência (escuta da Palavra) para reconhecer quem é Jesus. Enquanto não se faz o seu caminho até a cruz e ressurreição, estaremos sujeitos a perdê-lo de vista. Ainda que a aflição tome o nosso coração pela constatação de o termos perdido, a decisão de retomar o caminho de busca nos fará perceber que ele está próximo e caminha conosco, abrindo nossos olhos e aquecendo o nosso coração, a fim de prossigamos a nossa estrada “com grande alegria” (Lc 24,52). Que tanto a experiência pascal de Maria e José, como a dos discípulos de Emaús nos convençam de que é possível reencontrar o Senhor!



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana